Set/2015

 

Esta página tem dois objectivos, a saber:

(1) apresentação de obras em fase de pré-publicação e (2) divulgação de trabalhos de circulação restrita.

Em cumprimento deste último desiderato, foi anteriormente incluída uma selecção de artigos publicados na imprensa (desde a estreia literária do autor, de maneira que o leitor possa acompanhar a evolução e maturidade do ofício da escrita e, bem assim, os assuntos que sensibilizaram o escritor e/ou que motivaram opções cívicas do cidadão), a qual permanece vigente.  Complementarmente, pretende-se juntar, quando a ocasião o proporcionar, as obras que, na Biografia, se indicam como tendo sido divulgadas fora dos circuitos livreiros.

Em cumprimento do primeiro desiderato, divulga-se abaixo, em primeira mão, uma novela do VOL III  da Trilogia do Pesadelo, seguida do Capítulo 9 do romance «Mosquitos por Cordas no Lodaçal» (aqui publicado em Out/2014).

Parte I desta Página

 

Pré-Publicação do Novo Livro de

José Pires Campaniço

Um dia de Cada Vez

7 novelas precárias

 

Com a publicação do Vol. III, provavelmente no 1º trimestre de 2016, fica concluída a Trilogia do Pesadelo. Como, apesar de se apresentar em três géneros literários diferentes (contos-romance-novelas), se trata de uma só obra, uma grande parte dos personagens, bem como o espaço da sua actuação, do presente volume são desenvolvimentos de narrativas de Um Ano em Cheio e de Mosquitos por Cordas no Lodaçal. Francisco Lobato e Mariana Calhandra, por exemplo, são os protagonistas dos contos a págs. 94 e 120 do Vol. I.

Por razões de ordem técnica, pois que o livro se espraia entre as págs. 419 e 526, a novela a seguir apresentada sofreu cortes profundos, assinalados com o símbolo (…), o que se lamenta, mas não havia alternativa.

Com vista a obviar sobressaltos e crispações, dos leitores, esclarece-se que as estórias de Um Dia de Cada Vez  são parábolas, logo e necessariamente excessivas, tendo ainda em conta que:

  enquanto no Vol. I se procurou retratar as pessoas entroikadas (o povo que fomos numa certa época), e por isso mesmo o vasto painel de personagens foi cinzelado, maioritariamente, a partir de episódios reais, e no Vol. II se tentou denunciar um (novo) paradigma civilizacional que subjugou e manipulou aquelas pessoas minando-lhes subtilmente os alicerces morais e sociais, neste Vol. III alerta-se para os efeitos trágicos, no tecido colectivo e no devir assustador, se e quando as mesmas pessoas forem despojadas de valores e lhes deixarem apenas o móbil desesperado da sobrevivência cercado por édens virtuais.

Por fim, reafirma-se a nota dos volumes anteriores: toda a trama ficcional é fruto da imaginação do autor, mas são (infelizmente) fidedignos e do domínio públicos todos os dados estatísticos, citações de terceiros e resultados sociológicos do impiedoso programa de ajustamento da Troika.

As (significativamente 7) novelas precárias do Vol. III têm os seguintes títulos e subtítulos:

 

Corações estampados

Como o prémio auto do e-factura acirra e açula a malícia

de familiares e amigos de um idoso para o deixarem a pé

 

Cordeiros pascais

Quando a cobrança de um imposto de valor irrisório arrasta

uma família para a miséria e causa forte prejuízo a um banco

 

Vista grossa

Como um homicida promove a economia regional e se dá

sumiço ao seu corpo para se tornar uma bandeira libertária

 

Ossos disputados

Quando um coveiro mata colegas e a autarquia rapta idosos

em defesa do emprego e da manutenção dos serviços públicos

 

Honra lavada

Como os sonhos pueris dos jovens precários se dissolvem

no pântano da erosão social que mina as classes baixas

 

Almas envenenadas

Quando os alquimistas que produzem baratas tontas em série

reciclam um pobre de espírito em menino prodígio idolatrado

 

Demasiadas provações

Como as pessoas são sequestradas por técnicas de formatação

que as tornam figurantes da sua história enxuta de memórias

 

Caixa de texto: Honra lavada
Como os sonhos pueris dos jovens precários se dissolvem
no pântano da erosão social que mina as classes baixas
 

 

 

 

 

 

 

 

 


«A culpa é do sistema, que não dá a um homem

o fruto do seu trabalho.»

John dos Passos, Paralelo 42

 

 

     Depois de os advertir, em tom áspero e sibilino, que partia os cornos aos bois, Mariana Calhandra, destorcendo o corpo, ficou um bocado a olhar o movimento da rua através da janela do café, a seguir levantou-se de rompante, apanhou o copo do galão e o pires da sandes e, falando para ninguém, resmungou alto e provocatoriamente:

     -- Chiça! Fedem mais que o meu bácoro da matança!

     Avançou meia dúzia de passos rápidos, arrogante e agastada, e deteve-se perto da mesa ocupada por um jovem que, com o queixo apoiado nas mãos enclavinhadas, parecia absorto em esferas muito elevadas, que o brindariam e blindariam com uma couraça de tocante serenidade e evidente indiferença pelo ambiente tenso à sua volta.

     -- Importa-se? – perguntou Mariana Calhandra, inclinando brejeiramente a cabeça, o olhar lambuzado de terna jovialidade.

     -- ?! Oh, claro, faz favor.

     Mariana Calhandra sentou-se em frente do jovem e, descarregando sobre a mesa os recipientes que transportava nas mãos, deitou uma olhadela rápida e insolente aos babosos escorraçados, para se certificar que eles tomavam pleno conhecimento da ousada atitude que só pretendia amesquinhá-los ainda mais, que era o seu objectivo principal e deliberado, porque também havia um móbil secundário e um tanto obscuro na sua diligência, uma vez que a presença do jovem solitário e ensimesmado, envolto paradoxalmente numa aura de segurança e mistério, exercia sobre ela uma atracção subtil, mas penetrante.

     -- Não posso com gente atrevida.

     -- Como?

     -- Não viu o que se passou?

     -- Não dei por nada.

     -- A sério? Bom, melhor assim, deixemos isso.

     -- Ofenderam-na?

     -- Não. Só se armaram em espertos e… fizeram figura de parvos. Por isso mudei de lugar, para não irmos mais longe, porque estava disposta a enxotar-lhes as moscas daquelas ventas de bezerro.

     -- Pois, é uma chatice, mas às vezes vimo-nos forçados… Fique à vontade, que eu não a maço.

     -- Chamo-me Mariana.

     -- Eu sou Francisco.

     Como preâmbulo de conversa, no mínimo não era auspicioso, ou prometia pouco, porque Mariana Calhandra estava aborrecida com o incidente e Francisco Lobato deprimido com os acidentes dos seus planos profissionais e pessoais; não obstante, foi ele que, após uns momentos de silêncio em que ambos se empenharam em restabelecer o diálogo que não tinham previsto mas que agora não desejavam ver sucumbir prematura e ingloriamente, inquiriu no tom incaracterístico de quem pergunta as horas:

     -- Então a Mariana mora ou trabalha nestas bandas?

     Mariana sorriu – mostrando duas fiadas de dentes que eram um enlevo, muito regulares e alvíssimos – e, semicerrando os olhos, negou discretamente com a cabeça e veementemente de viva voz:

     -- Nem uma coisa nem outra. Vou apanhar o comboio.

     -- Ah, veio às compras. Ou a ver as montras – ajustou depressa, para salvar a face, porque ela não carregava embrulhos e, a manter apenas a primeira sugestão, ela ia julgar que era estarola ou despistado.

     -- Lamento desiludi-lo, mas tenho de me repetir: nem uma coisa nem outra. Vim fazer uns exames… médicos. Esses problemas… sabe, das mulheres, às vezes… só na cabeça. E o senhor?

     -- Não tenho tal apelido. Chamo-me Francisco.

     -- Ah, tem espírito. Gosto disso – confessou Mariana, sorrindo descontraidamente. – Bem, peço desculpa pelo descuido. E o Francisco?

     -- Também não moro nem trabalho aqui e nem sequer vou apanhar o comboio… nem ele a mim. Assim, não sei como as nossas linhas se cruzaram…

     -- Coitadinho – replicou Mariana, com terna brejeirice. – Anda perdido.

     -- Por estranho que pareça… acho que acertou – confessou ele, numa voz surpreendentemente nostálgica, com o olhar derramado no tampo da mesa.

     -- Se pelo menos souber onde mora, eu levo-o a casa.

     -- De comboio? – perguntou Francisco Lobato, empenhando-se em participar no jogo dela porque de repente se apercebeu que as respostas ditadas pelo seu melindroso estado de alma podiam ser mal interpretadas por uma estranha, levando-a a considerá-lo um pretensioso irritante e frívolo.

     -- Não! Pela mão. Não me julgue atrevida mas, sabe, acho que está aborrecido com qualquer coisa. Aborrecido ou magoado.

     -- As duas coisas. Mas não quero aborrecê-la com as minhas ralações pessoais.

     -- Se quiser desabafar, terei todo o gosto em ouvir… os seus transtornos passageiros que decerto está a sobrevalorizar, o que não me admira, porque somos todos assim – concluiu Mariana, com um sorriso confiante e um olhar doce e estimulante.

     Francisco ficou ainda um bocado com o olhar vazio perdido no tampo da mesa e depois começou a exorcizar os seus fantasmas num tom cavo e plangente, como se estivesse no confessionário – de que se afastara desde a primeira comunhão, insensivelmente, sem saber como nem porquê, arrastado pelos desafios da vida e não sentindo necessidade de tais âncoras.

     Depois de trabalhar vários anos numa seguradora, apanhou de repente guia de marcha, com o pretexto, em parte verídico mas também oportunista, de que importava embaratecer os custos da actividade na medida em que a carteira de clientes vinha sofrendo uma acentuada e progressiva erosão devido à voragem do austericídio; o que para ele não era propriamente novidade, pois que, entre outras funções, lhe competia cobrar os prémios dos segurados e, embora a lista que mensalmente recebia não variasse de tamanho, ia constatando, intrigado e com alguma preocupação, que se esfumavam continuamente muitos nomes com que já estava familiarizado; porque as pessoas e as pequenas empresas – numa economia centrada essencialmente no mercado interno, traiçoeiramente machadado com a redução do poder de compra dos consumidores por força dos cortes salariais, de pensões e de subsídios da segurança social e do agravamento dos impostos e dos descontos obrigatórios –, à medida que endureciam as medidas do abrasivo programa de ajustamento, tinham cada vez mais dificuldade em acudir aos encargos assumidos, mormente os que eram nucleares para a sua sobrevivência, como o crédito à habitação e os empréstimos para o desenvolvimento ou a modernização da actividade comercial ou industrial, e, então, entre as despesas que podiam sacudir sem danos imediatos desfaziam-se em primeiro lugar dos seguros, embora os refractários tivessem perfeita consciência de que tal opção era arriscada e podia revelar-se bastante perigosa, mas, entre uma dolorosa ralação actual e uma hipotética aflição no dia de S. Nunca à Tarde, dava-se de ombros e tinha-se pragmaticamente em conta que, nas circunstâncias presentes, o horizonte de todos era viver um dia de cada vez.

     Se o despedimento inesperado já era um problema muito aflitivo, que podia destruir a sua vida toda, porque o desemprego galopava infrene e, como mais tarde as estatísticas oficiais vieram confirmar, apenas um quinto dos escorraçados pelo garrote da troika conseguiu outra colocação, a sua situação particular sofria o brutal agravamento de não ter direito a indemnização pela quebra do vínculo laboral porque estava com contrato a termo certo (de seis meses) sucessivamente renovado, e, como descobriu mais tarde, com estupor, também não tinha direito a subsídio de desemprego porque era titular de bens cujo valor excedia o patamar fixado oficialmente, ou seja, era considerado rico… por ser titular de um apartamento para viver, comprado com recurso ao crédito bancário.

     (…)    

     No entanto, o destrambelho desta sociedade neoliberal subordinada aos códigos digitais ao mesmo tempo que pulverizava actividades económicas que se tinham por primordiais, como a dos angariadores e cobradores de seguros, criava novas necessidades nos mercados emergentes, como por exemplo as de guarda do corpo dos criativos que destruíram o modelo clássico – o que, curiosamente, desmentia a teoria do caos geral da economia mundial, deixando à vista que o presente estava umbilicalmente ligado ao pretérito, ou, materializando a questão académica, existia uma poderosa atracção entre as costas do presente e os punhos cerrados do pretérito – e as empresas de segurança vinham proliferando como cogumelos e publicando regularmente anúncios de contratação de técnicos.

     O ofício, inventado por uma sociedade cada vez mais desigualitária, em que os esfíngicos novos opressores tinham não obstante consciência que os oprimidos conheciam a identidade de quem puxava os cordelinhos das marionetas que os humilhavam e que são imprevisíveis e indetíveis os actos pessoais dos desesperados, pois bem, só por essa razão o ofício não lhe agradava, para além da aparente inactividade também não se coadunar com o seu carácter e o seu conceito de trabalho enquanto meio de realização pessoal e contributo para o progresso da colectividade e o aumento da qualidade de vida dos seus concidadãos; mas, por muito que se esforçasse, reflectisse e indagasse não via outra porta onde pudesse bater com algumas esperanças de admissão quase imediata.  

     Ora, esta contingência falava mais forte que todos os óbices que tal profissão lhe suscitava, porque necessitava urgente e impreterivelmente de assegurar uma fonte de rendimentos regulares, para satisfazer as suas necessidades pessoais e os encargos fixos que assumira, mormente as prestações do crédito bancário que lhe permitira adquirir o apartamento onde vivia, porque, esgotadas as parcas economias, não tinha ninguém a quem pedir socorro.

     (…)

     -- Portanto – esclareceu e concluiu Francisco Lobato –, depois de fazer há dias um teste escrito, fui agora a uma entrevista pessoal, que, creio, não me correu mal, porque estou habituado a lidar com as pessoas, e de todos os extractos sociais, e já adquiri uma base profissional bastante sólida, que também irá pesar no veredicto final.

     -- Então, as coisas estão bem encaminhadas e não tem razão nenhuma para estar pessimista – exclamou Mariana Calhandra, agradavelmente surpreendida e encorajadora.

     -- Provavelmente, tem razão, mas, quando a gente cria rotinas que por sua vez alimentam certas expectativas a médio e longo prazo, sentimo-nos desamparados quando subitamente regressamos à estaca zero.

     -- Nunca passei por isso mas compreendo que, em tal caso, se sinta uma espécie de retrocesso e uma pontada de frustração.

     -- Sim, sim, é mais isso que propriamente receio de desbravar um caminho novo.

     -- O caminho faz-se caminhando, diz-se nas minhas bandas[1].

     -- A propósito, não chegou a dizer para onde vai tomar o comboio.

     -- Para Alverca. Sou hóspede de uma prima, enquanto faço os exames que referi, mas vivo em Bolegos, não sei se já ouviu falar…

     (…)

     -- Evidentemente.

     -- Então e a Mariana? Se veio sozinha, também é livre ou o homem é embarcadiço?

     -- Divorciei-me…um ano depois de casar, imagine, Francisco. Incompatibilidade de génios.

     Tanto quanto ele sabia, a expressão era jurídica, argumento esgrimido nos tribunais, por isso o divórcio devia ter sido litigioso, ou seja, uma chatice das grossas para dar ao esquecimento, de modo que Francisco Lobato absteve-se de fazer qualquer comentário, para não lhe despertar evocações desagradáveis, limitando-se a assentir mecanicamente com a cabeça.

     (…)

     Trocaram o número dos telemóveis e a seguir dois beijinhos que não eram meramente sociais, porque os seus lábios procuraram tocar as faces do outro.

    (…)

*

 

     O primeiro dia no novo emprego começou por ser desmoralizador e no fim foi traumatizante.

     (…)

     Perto das treze horas, quando regressaram à sede da sua entidade patronal, Francisco Lobato foi dispensado para ir almoçar e informado que o seu segundo turno – que seguramente não seria de apenas três horas, mas de outras cinco ou seis, ou mais, enquanto fizesse falta, sem que daí lhe adviesse qualquer compensação pecuniária, porque tal era a dedicação pedida e o significado por extenso da misteriosa inteira disponibilidade que subscrevera contratualmente – teria início às vinte duas horas.

     Como a essa hora da noite está praticamente tudo fechado, com excepção das casas de diversão nocturna, estações de transportes público, farmácias de serviço e pouco mais, Francisco Lobato calculou que iria montar guarda a instalações de serviços públicos ou de grandes empresas – só esperava que não tivesse de fazer companhia aos guardas-nocturnos, porque as noites ainda estavam demasiado frescotas para se passarem ao relento, mas tentou abafar tal preocupação e enfiou-se na carrinha de nove lugares e esforçou-se em mostrar descontracção e participar alegremente na algazarra dos colegas, que pareciam putos que vão pela primeira vez de excursão a uns misteriosos e empolgantes monumentos históricos, falando todos ao mesmo tempo e sublinhando as excitantes proezas que contavam com encontrões e palmadas no sítio mais a jeito dos ouvintes próximos.

    (…)

     Surpreendentemente, a carrinha estacionou num refúgio da estrada, onde já se encontrava o carro de Mário Elias, um dos sócios-gerentes, co-fundador e alma mater da Inter Manus, o qual mandou formar os vigilantes à sua frente para lhes explicar, finalmente, a missão que tinham a cumprir – e que era sui generis, como decerto eles já deviam ter presumido, uma vez que tinham recebido ordens para se apresentarem à civil – e que seguramente cumpririam com o maior agrado, porque só lhes era pedido que se divertissem, exuberantemente, na discoteca que fora recentemente inaugurada nos arredores do Lodaçal, correndo as despesas, para as quais se pedia alguma contenção porque de modo nenhum deviam embriagar-se, por conta da entidade patronal.

     (…)

     O último alvo, que era o que tinham então em mira, era o novo bar de alterne num bairro da periferia do Lodaçal, cujos gerentes se faziam desentendidos quanto ao primeiro recado que lhes fora enviado por pessoa idónea.

     Com efeito, Mário Elias, valendo-se das relações que estabelecera quando estava no activo, arranjou maneira de um colega passar sub-repticiamente a castanha para o famoso e temido guarda Ramelas:

    (…)

     -- Então e quanto à segurança da casa, como é que tencionam fazer?

     -- Temos dois porteiros com muita escola e que impõem respeito.

     -- Dois porteiros? – repetiu o guarda Ramelas, num tom incrédulo e desafiador.

     -- Que valem por quatro! São cá dois calmeirões…

     -- Isto assim está mau – grunhiu o guarda Ramelas, meio preocupado meio zangado. – Está visto que os senhores vão-nos dar muitas chatices. E o que a Polícia já tem de sobra são chatices, digo-lhe eu.

     -- Essa agora? Mas porquê, senhor guarda? – perguntou um dos gerentes da discoteca, perplexo com a reacção da autoridade, que não compreendia.

     -- Porque os seus grandalhões valem tanto como pigmeus quando estoirar a bernarda. E que lindo fogo de artifício vai ser, quando as mamas de umas fizerem faíscas e puxarem fogo ao álcool de outros. Estamos frescos com o vosso amadorismo. Não vão ser poucas, as noites que passaremos em claro, a caminho desta choldra.

     -- Mas o senhor guarda acha que…

     -- O senhor guarda, no exercício das suas funções, já achou o que tinha a achar – ripostou rispidamente o guarda Ramelas, dando um toque no bolso do blusão onde guardava o livrinho das multas. – Mas, se quer um conselho de homem para homem, trate de contratar seguranças profissionais, antes que se arme uma balbúrdia que a casa venha abaixo ou que os sucessivos atropelos à paz pública imponham o encerramento das portas. É um conselho avisado e à borla, não o desperdice.

     Pior que desperdiçá-lo era ignorá-lo, ostensivamente; porque logo no outro dia o sócio-gerente João Moita fez uma visitinha à casa, acompanhado de uns amigalhaços que o apresentaram e, como quem não quer a coisa, deixaram escorregar a informação de que ele já tivera os seus tempos de artista da rádio, fazendo ainda uma perninha quando a ocasião se proporcionava, e que agora estava no ramo da segurança privada, sendo pois um homem que podia ser bastante útil quando menos se esperasse…

     Em face de tanta negligência ou sobranceria para com as lições teóricas, agora iam ministrar aos relapsos a primeira lição prática: 

     -- Bebem umas imperiais – começou por instruí-los Mário Elias –, em grupos de três, afastados uns dos outros, como se não se conhecessem, e, quando a casa estiver bem composta, fazem uma altercação, envolvendo o máximo possível os labregos que lá estiverem, e, quando começarem a voar cadeiras, raspem-se disfarçadamente. Incendeiem a atmosfera quanto puderem, mas evitem envolver-se em confrontos físicos directos, que apenas simularão entre vocês, a clientela que as mame e as pague, entendidos?

     No outro dia de manhã, João Moita, solícito e condoído, telefonaria aos desolados gerentes a lamentar os tristes acontecimentos e a falta de civilidade de uma certa franja dos noctívagos e, maviosamente, a repetir a sugestão que os seus comparsas já haviam aventado escorregar: se estavam preocupados com a repetição dos desacatos, ele encarregar-se-ia de que tal nunca mais se verificasse e, quanto aos honorários, nem valia a pena falar nisso, cobravam uma ninharia por serviços dessa natureza, pois que não iam além de quatro ou cinco horas diárias.

    Se eram tão broncos, somíticos ou arrogantes que nem assim perceberam o recado, na segunda lição iriam dezoito gladiadores determinados a escavacar metade do mobiliário antes que as sirenes da polícia se ouvissem na rua.

     E se porventura ousassem acolher-se debaixo de outra asa, então o caso podia ser muito, muito sério, e sair-lhes caro, muito mais caro que os serviços oferecidos e renegados, porque os estabelecimentos desse género são perigosos, a bem dizer uma gigantesca pilha eléctrica, e os curto-circuitos dão-se quando menos se espera e provocam danos consideráveis e até vítimas mortais.

 

*

 

     Francisco Lobato ficou radiante quando Mariana Calhandra o informou, nos fins desse mês de Março – do (4º) ano da desgraça de 2014 –, que ia novamente a Lisboa na próxima segunda-feira, para conhecer os resultados dos exames a que se submetera e, se necessário, fazer outros complementares – o que seria muito provável, como já estava prevenida, porque os sintomas que apresentava não eram suficientemente elucidativos, o que dificultava um diagnóstico seguro da fonte dos distúrbios de que padecia, por ora sem sofrimento assinalável nem perturbação das suas rotinas e afazeres, mas era indubitável que teria qualquer «avaria na cachola», como ela pitorescamente dizia e em cuja noção estavam englobados órgãos como o estômago, a vesícula, o fígado, o pâncreas, a bexiga, o útero e os rins, não constituindo parte da popular cachola o coração, os pulmões e os intestinos.

     Foram quatro dias mais longos que quatro meses (com salários em atraso, segundo uma recorrente moda nacional que os últimos românticos voltaram a homenagear inspirados numa Troika também nostálgica do preto e branco e do correspondente hímen sacralizado) e cuja extensão aumentou e aumentava continuamente porque ela lhe perguntara se ele podia ir esperá-la à estação de tão gratas recordações.

     (…)

     Mariana estava linda: os cabelos pretos a esvoaçar enquanto corria para ele fulgiam como asas de andorinhas num céu puro e leve de azul-de-nápoles, a sua tez de âmbar ganhava uma cariciosa tonalidade acetinada, apelando ao toque hesitante de uns dedos metamorfoseados em plumas electrizadas e os olhos de um castanho ardente e lúbrico como a boa terra que alimentava trigais e papoilas inundavam o espaço todo com uma luz avassaladora e inebriante – e ninguém diria, não podia acreditar nem suspeitar sequer que aquela torrencial fonte de excitação contagiante e delicioso arrebatamento da alma que atingia a sua plenitude estava contaminada por um veneno desconhecido e insidioso, provavelmente letal.

     Impetuosos e alvoroçados, estreitaram-se num abraço apertado, comungando carnalmente uma ansiedade obscura, errática e empolgante, as faces ardentes unidas, as mãos sôfregas e impacientes percorrendo as costas do outro num atarantamento de náufrago a gatinhar nos juncos escorregadios das margens da ilusão revigorante e incorpórea e não obstante soberbamente apelativa e irrenunciável.

     -- Tive tantas saudades tuas!...

     -- Chiu!... Não digas nada, porque estou a sonhar e não quero acordar!

     Saíram de mãos dadas da estação e, obedecendo a um impulso inconsciente, abancaram no café onde se tinham conhecido, enlevados com o reencontro e emocionados com as recordações que ganhavam uma dimensão e profundidade novas.

     O diálogo foi sincopado, repleto de hiatos que os olhares carinhosos e os gestos ternos, alguns apenas esboçados, como os toques de mãos enredadas na tibieza, preenchiam plena e significativamente; não obstante, conseguiram verbalizar o que, secreta e ardentemente, ambos desejavam: uma visita de cortesia ao apartamento dele, para ela ver como ele vivia e, a partir do seu estilo de vida, por extrapolação, fazer um esboço aproximado do seu carácter, dos seus sonhos, dos limites dos seus anseios, e para ele ter oportunidade de decifrar a personalidade dela, as quimeras que alimentava e os obstáculos que a venceram ou que suplantara a partir dos comentários que lhe suscitasse a atmosfera que ele respirava.

      O convite dele, formulado timidamente, embora fosse trivial naquelas circunstâncias, revelou-se uma esplêndida ideia, porque Mariana ficou completamente desinibida logo que entraram em casa e para tal facto muito contribuiu o cão que já lhe tinham devolvido e que, depois de a cheirar uns momentos, muito sisudo e concentrado no seu misterioso inquérito, correspondeu às festas dela com lambidelas cordiais e lhe deu patadas nos braços a reclamar brincadeira, como se fossem velhos amigos.

     -- Mas que bichinho amoroso!

     -- Pudera! Aprendeu com o dono.

     -- Ninguém diria…

     -- Pelo contrário, toda a gente diz que os cães adquirem a personalidade do dono – observou Francisco, com forçada veemência.

     -- Dos donos com quem vivem muito tempo, suponho – sugeriu ela, olhando-o maliciosamente pelo canto do olho, enquanto afagava as orelhas do animal, empurrando-as para trás, excitando-lhe assim e ao mesmo tempo os músculos do focinho.

      -- Realmente, é o que sucede, com a generalidade dos cães, mas os animais de inteligência superior adaptam-se ao dono com a rapidez de um aluno superdotado ao novo professor.

     -- É efectivamente como dizes. Sabes, eu também percebo de cães…

     -- Então, se me queres roubar a afeição desse, vai ao frigorífico e traz-lhe uma fatiazinha de queijo, o caviar por excelência deste excelso glutão, e vais ver que arranjas um apaixonado constante e devotado até ao seu último latido.

     Com o cachorro a usar as pernas dela como se fossem pinos de uma gincana, a visitante rumou para a cozinha, a fim de dar execução ao engodo sugerido e, depois de ser exuberantemente homenageada pelo incauto embarrilado e de participar algum tempo nas suas pantominas, olhou demoradamente o visitado e fez-lhe a mais improvável proposta:

     -- Gostava de te ver fardado.

     Um breve arrepio percorreu o corpo subitamente tenso de Francisco, mas, numa rápida cambalhota do pensamento, compreendeu e desculpou o atrevimento: era natural que ela tivesse uma espécie de fascínio consuetudinário por fardas porque, numa aldeia remota, as pessoas mais importantes, as que não sofrem os rigores da canícula e da geada, que se barbeiam todos os dias e não têm as unhas de luto, usam todas uma variante de uniforme: uma farda propriamente dita, a Guarda, o regente da Filarmónica, o carteiro e o guarda-fio, uma sua variante ou apenas uma peça, as professoras, o médico, o cauteleiro, o motorista e o bilheteiro da camioneta da carreira.

    (…)

     Com expressão divertida, olhar provocante e meneios dengosos, Mariana acedeu ao convite e sentou-se no colo dele com um suspiro abafado de pretensa resignação, ao mesmo tempo que revirava graciosamente os olhos, onde já lucilava uma crescente flama voluptuosa.

     Os ardores da paixão, que pundonorosamente vinham dissimulando, com receio da reacção do outro, derramaram-se com rapidez e fragor e possuíram-se, num frenesim arrebatado e insaciável, até à explosão do êxtase indizível, como um manto de espuma tépida e inebriante; depois Francisco, um pouco estonteado, mas sentindo que atingira um nirvana inexcedível, deixou-se deslizar para o chão e, ajoelhando-se, acariciou ternamente todo o corpo dela, que permanecia de pálpebras cerradas e boca entreaberta, um véu etéreo de serenidade infantil a cobrir-lhe o rosto que a luz suave do entardecer, filtrada pelas persianas, tornava ainda mais belo, deslumbrante como uma pintura antiga resplandecente de encanto e mistério seculares, e, a seguir, com o cuidado e a ébria volúpia de uma criança a abrir sigilosamente a lata das guloseimas interditas, introduziu as mãos e depois os braços debaixo das costas e das coxas dela e, flectindo as pernas, ergueu-se e levantou-a com carinho e determinação e, com a mesma destreza e suavidade, como se cumprisse um ritual singularmente solene e emocionante, depositou-a na cama e cobriu-a com o seu corpo como que a protegê-la de ignotos miasmas que quebrassem o encanto que seria efémero numa eternidade.

     Duas horas mais tarde, alquebrados pelas constantes e fragorosas ondas de desejo exaltante, em sucessivas e irrecusáveis vertigens que ora os mergulhavam num abismo doce e relaxante ora os catapultavam ao vórtice luminoso e esbraseado de uma ânsia primordial fugazmente apaziguada para lhes manter acesa a ambição da suprema felicidade perpétua, Francisco observou preguiçosamente:

     -- A tua prima não estará em cuidados com o teu atraso?

     -- Não está, não, porque... esqueci-me de a prevenir, imagina!

     Francisco ficou uns momentos a tentar decifrar a mensagem extravagante e de todo imprevista, e depois comentou numa toada mais viva:

     -- Então, neste momento, não tens onde pernoitar.

     -- Ora, qual é o problema, com tantos hotéis na cidade?

     -- Além de pensões, albergues de juventude e algumas casas particulares.

     -- Algumas casas particulares?

     -- Que alugam quartos, a trabalhadores provisoriamente deslocados e a provincianos perdidos na capital.

     -- É precisamente o que me convém.

     -- Também há quem, episodicamente, os ceda de borla.

     -- Que maravilha. Se conhecesses uma boa alma dessas...

     -- Por acaso até conheço uma.

     -- Verdade? E apresentas-ma?

     -- Com todo o gosto. Fecha os olhos. Agora abre-os. Tens à tua frente uma dessas boas almas.

     (…)

*

 

     Nesta vida danada, que alguns mais originais ou mais marafados preferem qualificar de entroikada, as coisas boas duram pouco, muito pouco, para quem vive na sombra atrabiliária que lhe mirra a alma, e a vilegiatura de Mariana esgotou-se ao fim de três dias – do calendário, porque durante as horas de sol ela tinha as suas ocupações no hospital e Francisco ia trabalhar, mas, malgrado essa contrariedade incontornável, as tardes, as noites e as manhãs que passaram juntos foram para ambos o período mais absorvente e arrebatador que tinham conhecido e que lhes deixaria memórias indeléveis, tão ou mais perfumadas que a magnífica estação da fabulosa infância, cuja distorção do tempo e do espaço ajudam a cristalizar numa redoma mítica os episódios mais triviais que a nostalgia pincela de fulgurações irreais que, se necessário, prevalecem sobre a realidade presente, inteiriçada de frivolidade.  

     Obtida a concordância de um colega para trocarem de turno, com o beneplácito do chefe do grupo – que, vá lá, não se chamava pelotão ou companhia –, Francisco ficou em casa na tarde do terceiro dia, não só para partilharem essas últimas horas como também para a levar de carro à estação do Oriente, onde apanharia o comboio para o Sul.

     À revelia do que tinham previsto, Mariana chegou a casa perto das duas da tarde, porque as coisas não tinham corrido muito bem no hospital, e vinha com um ar abatido e fisicamente exausta, porque andara num virote e o desânimo também a deixava sem reacção.

     -- Parece que não atinam com o que tenho e fiz mais uma biopsia, cujo resultado será conhecido daqui a duas semanas. Segundo percebi, este exame é que vai confirmar ou desmentir as suspeitas deles.

     -- Mas suspeitas de quê?

     -- Isso gostava eu de saber, mas eles não se descosem enquanto não estiverem em condições de fazer um diagnóstico definitivo.

     -- Realmente, os médicos são assim – assentiu Francisco, desolado.

     -- Não querem criar falsas expectativas nos doentes, mas, ao mesmo tempo, mandando-nos fazer exames às cegas e com palavras mastigadas e cenhos franzidos, alarmam uma pessoa, que às tantas começa a recear que está toda podre.

     -- Espero que não tenhas tais receios, porque és um fruto delicioso.

     -- A pele das maçãs, por exemplo, às vezes tem cores mais sadias e charmosas que a paleta de um génio da pintura, mas por dentro estão bichosas.

     -- Eu estive muitas vezes dentro de ti e nenhum bicho me mordeu – observou Francisco, com um sorriso brejeiro, num chiste que tinha subjacente a intenção de a descontrair e animar.

     Mas Mariana cedera mesmo ao aborrecimento e à preocupação – e, desconfiava ele, talvez tivesse captado alguns sinais que a deixavam apreensiva e que lhe omitia para o não afligir escusadamente – e a última horita e pouco que passaram juntos foi prenhe de silêncios amargurados, gestos canhestos cuja ternura estiolava antes de florescer, sorrisos postiços que se esfarelavam ante um olhar envergonhado e condoído.

     Na despedida, valeu sobretudo o abraço muito apertado em que estreitaram os corpos frementes e convulsivos, os olhos feridos e fechados, as mãos ávidas tentando segurar qualquer coisa de fascinante e inconsistente, cujas vibrações sentiam... escapar-se inexoravelmente, malgrado o impulso instintivo e o esforço deliberado.

     Francisco tomou o caminho de casa tristonho com a situação que o transcendia e ainda mais angustiado por não descortinar um meio para a suplantar, ou seja, para repor a relação no estado em que estava na véspera, resvalando insensivelmente para o desalento à medida que se afastava do ponto onde a deixara e a distância o fazia perceber que a partida dela tornava praticamente impossível os seus desejos mais profundos.

     Estacionando à porta de casa, percebeu também, num lampejo de lucidez, que não era nada boa ideia enfiar-se no seu casulo, onde a ausência dela tinha o altar de uma obsessão deprimente, e decidiu acampar no Café Caravela na esperança de encontrar alguns compinchas que o ajudassem a desanuviar o espírito, obrigando-se a tomar atenção a outros assuntos; mas, decididamente, aquele dia parecia embruxado e, perto da porta do estabelecimento cruzou-se com uma pessoa uniformizada que lhe provocou instantaneamente um calafrio: o polícia que, há largo tempo e a muitas dezenas de quilómetros dali, lhe infernizou a vida por causa do cão que tinha em casa, que mandou sequestrar no canil municipal e o levou a ele para a esquadra para melhor identificação, porque o bilhete de identidade estava caducado, embora a carta de condução estivesse impecável.

     Desviando rapidamente o olhar dos olhos que se espetavam nele como puas, Francisco Lobato, siderado com a aparição surpreendente e inquietante, ficou a perguntar-se o que andaria o homem ali a fazer, se pertencia a uma esquadra bastante longe, a não ser que tivesse sido transferido – oxalá que não, porque, depois de ter atirado com os dissabores para trás das costas, começava a sentir-se possuído por uma estranha animosidade e um vago temor de uma criatura que se considerava imbuída de uma missão transcendental e um tanto ou quanto apocalíptica, não se coibindo de aterrorizar os infractores das leis mais dúbias ou dos regulamentos mais permissivos.

     -- E esta?! Macacos me mordam se – resmungou em surdina o polícia, desenterrando das catacumbas da memória o rosto integral da imagem que vislumbrara mais ou menos de perfil. – Espere lá. Alto!

     Francisco Lobato recebeu a ordem áspera como se tivesse levado uma chicotada nas costas e deteve-se automaticamente, permanecendo no entanto de costas para o apelante, hirto e nervoso.

     O polícia aproximou-se com duas passadas rápidas e elásticas e, espiando atentamente o rosto do popular, inclinando a cabeça para uma banda e outra, esboçou depois um esgar de homenagem à sua famosa acuidade visual e à sua proverbial memória e, satisfeita a sua vaidade voraz, observou num tom vagamente familiar e acintoso:

     -- Estava muito longe de imaginar que ia embicar consigo aqui. Tem cá residência?

     -- Já constava nos documentos – replicou Francisco Lobato, sentindo subitamente necessidade de lhe cortar algumas vazas para salvaguardar a sua dignidade.

     -- É provável – assentiu o polícia, desdenhoso da subtil alfinetada. – Anualmente, passo os olhos por milhares de dizeres de identificação, pelo que é humanamente impossível associar uma cara a uma morada.

     -- É mesmo.

     -- Pois é. Sempre recuperou o cão ou abateram-no?

     -- Está comigo.

     -- Que bonito. No fim, tudo acabou em bem. Agora mantenha as vacinas em dia, sim? Sabe, agora presto serviço nesta esquadra.

     Por momentos, Francisco Lobato ficou a cogitar se as duas últimas informações eram independentes ou se a última era complementar da primeira, constituindo a associação uma terceira mensagem – que lhe revolvia as entranhas, mas procurando abafar as suas funestas desconfianças e abreviar o diálogo que o crispava, replicou com toda a urbanidade e num tom frívolo:

     -- Desejo-lhe felicidades. Passe bem.

     -- Adeus, até mais ver – despediu-se o polícia, numa toada que lhe sou dúbia, talvez premonitória.

     Quando estava a fardar-se, para ir pegar no turno do parceiro com quem tinha feito a permuta, Francisco lembrou-se de repente que o encontro com o polícia lhe esbatera a decepção e a angústia das últimas horas passadas com Mariana, mas teria preferido a amargura antiga a esta nova inquietação, porque só a perspectiva de, uma vez por outra, esbarrar com ele na rua deixava-lhe a boca seca e um nó no estômago.

     Nos dias seguintes não sucedeu nada digno de registo e, dedicando a máxima atenção e cuidado na execução das tarefas que lhe eram distribuídas e relativamente às quais não tinha qualquer experiência e esforçando-se ao máximo para não ser alvo de reprimendas ou explicações humilhantes à frente de terceiros, Francisco Lobato apercebeu-se, com um misto de alívio e ligeiro desagrado, que se tinha esvaído o vago receio que lhe inspirara o seu carrasco e que também tinha empalidecido muito a frustração da amarga despedida de Mariana, na qual continuava a pensar, mas evocando e saboreando os momentos mais tocantes dos outros dois dias.

     Mas as nuvens negras, se o seu coração tinha entretecido uma poalha de nostalgia que as dissimulava, continuavam porém a pairar sobre o chão de escolhos que pisava e tudo se precipitou no domingo de manhã, infiltrando-se a tragédia por uma fresta burlesca.

     Francisco fazia jogging numa artéria periférica do Lodaçal, para manter a forma física e passear ao mesmo tempo o cão, que ficava os dias inteiro no apartamento, só cheirando o ar da rua se fosse à varanda, quando viu, bem lá adiante, um homem, também em fato de treino e com o capuz na cabeça, sentado num dos bancos de pedra do lado oposto àquele em que corria, cuja visão casual nem seria registada pela sua memória temporária se não se desse o caso de, poucos segundos depois, o cão o ultrapassar em corrida acelerada, cruzar a rua absolutamente fascinado pelo seu alvo, sem prestar a menor atenção ao trânsito à sua retaguarda, que não estava perto mas que podia aproximar-se, e só se deteve junto do desconhecido, olhando-o fixamente, com a cabeça baixa, as orelhas viradas para trás, as patas retesadas, os dentes arreganhados, nitidamente em posição de ataque iminente. 

     Assim também o entendeu a pessoa classificada como presa e, sentindo-se em posição particularmente desfavorável – porque estava sentada, de pernas abertas, com os baços caídos sobre as coxas, pelo que só o simples movimento de tentar levantar-se podia ser o estímulo de que o bicho esperava e, nesse caso, ficava com o rosto e o pescoço à mercê dos caninos da fera –, não mexeu um músculo, limitando-se a aguentar o olhar desafiador do cão, esperando desarmá-lo mostrando que não tinha medo e que ele não era um vencedor antecipado.

     Naquela situação, era a atitude correcta e um bicho inteligente e que não tivesse rancor à presa perderia grande parte da agressividade instintiva e, se lhe fosse oferecido um pretexto externo, rosnaria ameaçadoramente (desta vez, safas-te, mas não te metas mais no meu caminho) e iria à sua vida todo ufano do combate que vencera sem necessidade de o travar, mas qualquer coisa misteriosa deve ter feito saltar a cavilha do sitiador – talvez, quem sabe?, a aproximação do dono, perante o qual não quereria passar por um histrião de opereta, só empáfia e bazófias – e, num ápice, zás, abocanhou a presa no seu ponto mais vulnerável, fosse na óptica canina ou na humana. 

     Quando chegou ao pé do conjunto – que, pela sua imobilidade, parecia escultónico –, Francisco Lobato apanhou um choque quando constatou que a peste do polícia se atravessava outra vez no seu caminho e levou com uma descarga ainda maior quando reparou na sua expressão de terror mudo e rígido – os olhos redondos de pavor, a boca entreaberta onde um grito de socorro não se soltava por ser maior que a talisca dos beiços, os braços afastados do tronco como as asas molhadas e inúteis de um pássaro enfeitiçado pela caverna quente atrás das mandíbulas de uma serpente – e só depois de se recompor de tão fortes abanões desviou o olhar um pouco para baixo e apreendeu a real dimensão da cena burlesca: o polícia poderoso e prepotente estava apanhado pelos tomates; e mais inofensivo e infeliz que um pintainho.

     Então, e involuntariamente, foi tomado por um ataque de riso histérico, como se assistisse à cena mais cómica e hilariante deste mundo e arredores, possuído por uma dessas crises nervosas que desmancham a compostura de qualquer um nas situações mais inconvenientes, desde as velhas que se estatelam nas calçadas, provocando uma balbúrdia indescritível com a saraivada de laranjas-granadas e repolhos-obuses, às madamas todas solenes e circunspectas nas suas vestes de cerimónia que, no adro da igreja, vigiam altivamente os pimpolhos prestes a participar no ritual da 1ª comunhão, cujo nervosismo faz com que um se descuide e estoire a hilaridade inconveniente das deusas seráficas desnudadas em pecadoras desbragadas, o que faz multiplicar o espectáculo indecoroso entre o público eufórico por poder legitimamente dar largas à sua recalcada veia iconoclasta.

     -- Chame o cão – latiu ou rosnou por fim o detido sem crime flagrante à vista.

     Despertando para a realidade deveras pavorosa com um sobressalto, Francisco Lobato olhou fixa e demoradamente o polícia e replicou com desarmante neutralidade:

     -- O cão é manso e, para fazer o que fez, devem ter contas antigas para acertar. Uma vez que se conhecem, entendam-se vocês os dois.

     -- Chame o cão, raios – ordenou num tom mais alto e áspero.

     -- O cão odeia-o por alguma razão. O que é que lhe fez?

     -- Chame a porcaria do bicho!

     -- Não tenho nada a ver com as vossas desavenças. Por que não o enxota você?

     -- Porque se me mexo ele vai pensar que o ataco e fecha mais a boca.

     -- Pronto, está bem. Rex, aqui. Aqui! Rex

     Largando de súbito a presa, o cão correu para o dono e sentou-se entre as suas pernas, continuando muito atento aos movimentos do alvo perdido.

     -- Vai pagar por isto! – uivou o polícia, passando da lividez a um tom escarlate, os olhos mortiços agora a cuspir chispas, enquanto remexia nas partes para se certificar que não tinha feridas.

     O ameaçado olhou-o de alto a baixo, num desafio arrogante, e decidiu que era chegada a hora de também mostrar que não tinha medo para não correrem atrás de si para lhe abocanharem os fundilhos.

     -- Senhor, oiça, se faz favor! Oiça duas coisas muito simples, que são: primeiro, eu não lhe aticei o cão, como você sabe perfeitamente, embora eu não duvide de que, com tanta maldade que medra nesse corpo, venha a jurar o contrário; segundo, parece que tem a mania que é um todo-poderoso, mas não é, muito longe disso, porque até um animalzinho com pouco mais de dez quilos o deixa mais mansinho que um cordeiro. Se tiver miolos bastantes para aprender esta lição, talvez poupe a si próprio muitos dissabores. Porque quem vai à guerra dá e leva e eu não tenho medo de si e, sabe, agora também faço parte de um corpo de polícias… privados. O que se passou, foi um aborrecimento, mas nem sequer está ferido, por isso tome juízo e não faça mais incêndios, porque ainda se queima.

     -- Vais arrepender-te, filho de uma grande puta!

     -- Se ainda tiver tomates para repetir isso, parto-lhe os dentes todos, neste preciso instante – sibilou Francisco Lobato, fuzilando-o com o olhar e avançando um passo, no que foi acompanhado pelo cão, que votou a arreganhar-se, como se compreendesse o que estava a passar-se.

     Fitaram-se rancorosamente durante um longo minuto, de punhos fechados, avaliando as forças um do outro e as consequências da briga para ambos, o que lhes refreava o impulso homicida.

     -- Anda daí, Rex. Vamos chamar uma ambulância porque um doido fugiu do manicómio – resmungou Francisco Lobato, depois de esperar uns segundos que o outro repetisse o insulto intolerável.

 

*

    

    (…)

     Estava porém equivocado sobre a capacidade de indulgência do seu adversário e a prometida factura chegou na terça-feira, materializada num bilhete-postal oficial, convocando-o para se apresentar na esquadra «a fim de tratar de assunto de seu interesse», segundo o chavão corrente.

     Espremendo a mioleira para tentar adivinhar o seu interesse que desconhecia, mas que não queria negligenciar, por recear ficar mais pobre do que já estava, Francisco Lobato presumiu que desejavam dar-lhe a honra de contribuir pecuniariamente para o equilíbrio das contas públicas, fazendo um donativo-penitência por passear o cão sem trela nem açaime e, a ser assim, como ia apostar que era, o melhor, o mais correcto, o que estava mesmo indicado era apresentar-se imediatamente, de ilustre peito lusitano feito, e desembolsar o que fosse preciso para levantar hoje de novo o esplendor de Portugal!

     Porém, ao avistar o toldo da esquadra, arrependeu-se da sua precipitação em responder à chamada porque lhe acudiu a ideia peregrina que talvez não fosse conveniente apresentar-se fardado, o que o outro podia considerar uma atitude provocatória na medida em que lhe dissera, com soberba intimidativa, que também era polícia privado, sem esquecer que era voz corrente que não simpatizavam uns com os outros, em razão da sobreposição de funções e da disputa do território comum – cuja colisão de competências e autoridade remetia para um conflito mais entranhado e dilacerante, onde estava em jogo a garantia e defesa do emprego de uns e outros, o que só podia descambar numa guerra surda e sem quartel.

     Alegadamente porque quem enviara a convocatória se encontrava em serviço externo, Francisco Lobato foi informado que devia esperar um pouco e convidado a sentar-se no banco de ripas no corredor a seguir à porta da rua da esquadra, o que, passado algum tempo, considerou um tanto humilhante, porque ficava marcado, com olhares de esguelha, por todo o quadro de pessoal da esquadra, que entrava e saía a todo o instante, e bem assim por toda a gente que ali se deslocava a tratar de quaisquer assuntos, voluntariamente ou sob detenção, que decerto ficaria a interrogar-se sobre as suas proezas reprováveis – que alguns até iriam considerar escabrosas e que teriam de ser reviradas com pinças, porque demoravam-se muito tempo no interior da esquadra e ainda ali o encontravam, cabisbaixo e abatido, à saída.

     Após mais de uma hora de espera no banco dos corrécios, Francisco Lobato foi levado à presença de quem o reclamava, não chegando sequer a vislumbrar o mais ténue resquício do seu interesse porque, mal penetrou na saleta, ficou em estado de choque, uma vez que o polícia que o tomara de ponta derrubou a pequena secretária, sentou-se no chão com as pernas no ar, gritou a pedir ajuda e, acto contínuo, era agredido por quatro punhos.

     Com a odiada farda meticulosamente escovada, e com a fronha impecável, algum tempo depois o convocado foi amparado até uma porta das traseiras da esquadra e empurrado violentamente para o meio da rua, quiçá com a melhor das intenções, para ganhar embalagem, por ter as baterias em baixo, como aliás os seus três espectadores logo constataram num tom lamentoso:

     -- Tal não é tachada do bicho! Vai de parede a parede!

     -- Estes bêbados que não se seguram nas pernas são perigosos. Deviam ser metidos no calabouço até a cozerem.

     -- Queira Deus não se meta à frente de um carro e lhe amasse o capot.

     Além das que lhe ofereceram, grátis mas sem serem amostras, Francisco Lobato ainda juntou mais algumas pelo caminho até casa, apanhando-as nas esquinas das portas e portões e nos troncos das árvores dos passeios, que acamou como pôde nos ombros, onde tinha sido mal aviado.

     Apesar de tudo, e como ainda estava quente com a rija fricção de trinta nós de dedos, não teve dificuldade de maior em chegar a casa, despir-se aos repelões e meter-se na cama; o pior foi no outro dia de manhã, quando firmou o cotovelo direito no colchão, para se levantar, e o mundo inteiro lhe desabou sobre o canastro. Só para apanhar o telemóvel em cima da mesinha de cabeceira para avisar que estava doente e não ia trabalhar precisou de uma eternidade e foi o cabo dos trabalhos.

     Como era jovem, saudável e bem constituído, uma boa surra era como uma rija bebedeira: passadas vinte e quatro horas estava pronto para outra, driblando a vulgar ressaca.

     Portanto, na quinta-feira de manhã Francisco Lobato apresentou-se ao serviço e pediu para falar com o patrão Elias, por considerar, dadas as funções que desempenhava, e os reflexos que o caso podia ter nos interesses da firma, que ele devia ser posto ao corrente do que acontecera.

     -- Não estou a ver quem é esse bandalho, mas tomo a devida nota – observou Mário Elias, com expressão grave, deveras impressionado com o relato preocupante dos sucessivos aborrecimentos que uma pretensa autoridade vinha causado ao seu novo recruta, que nada tinha de arruaceiro, o que ele lastimava mais que aprovava. – Agora, o que vai fazer?

      -- Não sei… Pode-se fazer alguma coisa?

     -- Muitas. Pode apresentar queixa, com o que arranja uma braçada de problemas que o acompanharão à cova, porque não tem provas de nada. Pode ficar quieto, fiando-se na virgem e na fraca memória deles, devendo depositar tanta confiança numa coisa como na outra. Pode também estudar-lhe os hábitos e acertar as contas às escuras.

     -- Vontade não me falta…

     -- Pois claro – aprovou Elias com convicção –. Quem não se sente, não é filho de boa gente. Se me der um roteiro do vilão podemos ver o que se pode arranjar…

     -- Agradeço muito a oferta, mas, sabe como é, certas coisas pessoais… custam a dar a terceiros, porque no fim ficam-nos sempre atravessadas …

     -- Pois, uma questão de brio… Mas, se reparar bem, este seu problema também é em parte nosso, porque se desancam um dos nossos e nos ficamos, amanhã fazem o mesmo a outro e depois a outro e, com isso, como é evidente, a firma perde credibilidade.

     -- Ah, pois é, não me tenha apercebido… Sim, temos de conjugar as coisas…

     Francisco Lobato percebia lindamente onde o patrão queria chegar, mas também estava a ver outra coisa que lhe arrepiava as entranhas: se retaliasse com o apoio activo da empresa mais do que ficar a dever um favor hipotecava-lhe a sua liberdade, com consequências que poderiam ser mais gravosas e insuportáveis que o correctivo por vingar, de maneira que, socorrendo-se de evasivas e gestos dúbios, procurou não se comprometer num sentido ou noutro, por se lhe afigurar que a atitude mais prudente era deixar passar algum tempo, a ver se as coisas ficavam por aí ou se ficariam brasas sob as cinzas.

     O assunto era realmente preocupante, mas não chegou a ter tempo de se ralar muito porque, à tarde, quando chegou a casa, viu imediatamente que tinham sobrado brasas vivas.

     -- Os documentos pessoais e da viatura – exigiu o polícia, ríspido, esquecendo a continência regulamentar e o faz favor que teria caducado.

     Sem proferir palavra nem o olhar a direito, Francisco Lobato entregou os documentos e, receoso e angustiado, verificou, pelo retrovisor interior, que o agente da autoridade usava a bagageira do carro de giro como secretária para redigir relatórios ou preencher impresso – o que o deixou alarmado.

     -- Assine aqui – ordenou-lhe o polícia, enfiando o braço pela janela do carro e espetando-lhe com uma espécie de livro debaixo do nariz, enquanto que a outra mão lhe despejava os documentos no colo.

     -- Assino o quê?

     -- A notificação da multa que acaba de mamar!

     -- Uma multa? Que infracção cometi?

     -- Falta de cinto se segurança replicou o polícia, subitamente muito urbano, com um sorrisinho quase amistoso, enquanto os olhos brilhantes de malícia saltitavam do ombro esquerdo para as faces congestionadas do infractor atónito e estarrecido.

     Rendido à evidência do inquestionável facto legal, Francisco Lobato pegou na esferográfica estatal que lhe ofereciam e plasmou no impresso um gatafunho quase indecifrável, porque assinava numa posição duplamente incómoda, no ar e com o tronco amarrado ao banco do carro.

     Ficou agoniado e furioso com a baixeza do truque, mas acabou por lhe dar um desconto, presumindo que aquela punição pecuniária seria para compensar as duas multas do cão, por falta de açaime e de trela, que não lhe foram aplicadas e que talvez lhe saíssem mais caras e, reconfortado com esta ideia, dormiu bem sobre o assunto.

     O pesadelo só sobreveio quando já estava acordado mais de cinco horas, depois do almocinho de sábado, ia todo descansadinho da silva a caminho do Café Caravela, para tomar a bica da ordem, e apanhou outra multa tirada a papel químico da anterior.

     Apesar de ter perdido toda a vontade no saboroso e aromático cafezinho, sentou-se a uma mesa a reflectir na situação kafkiana em que mergulhara desamparado e como voltar o bico ao prego.

    (…)

    Sim, talvez a solução fosse apenas essa e mais nenhuma: estudar-lhe os passos e os hábitos, como lhe sugerira Elias, e fazer-lhe uma espera, uma noite num beco escuso, e rachar-lhe a cornadura com um cacete! Sim, talvez a solução fosse apenas essa e mais nenhuma, e, pronto, se tinha de ser, tinha de se conformar.

     Despertou do delírio incandescente com uma vigorosa palmada nas costas e uma saudação amistosa:

     -- Bons olhos o vejam! Já aprendeu a marcar passo, ombro arma e isso tudo?

     Era o ex-cliente Valério, a quem tinha vendido uma porradaria de seguros, porque ele andava sempre com uma fisgada e os negócios, para ele, eram como os alcatruzes: ainda um não tinha dado o litro e a gotinha e já estava a futurar noutro, na mesma rua, noutro bairro ou numa terra distante, porque o que importava era fazer aquisições por dez e vender por cem. Ou mil. Por vinte não… valia a pena a energia consumida pelos neurónios.

     -- Oh, já ando no curso para sargento. Por isso, sente-se e tome qualquer coisa à custa das futuras divisas.

     -- Fico muito contente, até porque, se quer que lhe diga, ali do balcão fiquei com a ideia de que andaria um tanto murcho. Ainda bem que não há novidade…

     -- Olhe, se quer que lhe diga, há; e grande; e bastante aflitiva.

     -- Não me diga!... Se puder ser útil, disponha.

     (…)

     Valério ouviu-o atentamente, sem sequer pestanejar, e prolongou esse ar concentrado mesmo depois do incrível chorrilho de prepotências chegar ao fim.

     -- Hum… Você não se vai ver livre do homem tão depressa. Ou talvez não… De facto, ele só lhe aplica a pastilha porque estão sozinhos e se você o desmente ainda são capazes de o processar por difamação e sabe-se lá que mais. Se andasse acompanhado já não o multava.

     -- Até aí já eu cheguei – lamuriou Francisco Lobato, desolado. – Não vejo é como posso contratar um pajem para me fazer companhia. Se tivesse um colega que morasse perto de mim…

     -- E um que more longe, mas que dê a volta por aqui?

     -- O que mora mais perto ainda fica muito longe e seria um grande transtorno para ele, porque teria de se levantar bem mais cedo.

     -- É pena, mas… espere, estou cá a pensar… Sim, talvez resulte, passando depressa, quando o avistar…

     -- Qual é a ideia?

     -- Espantosamente simples: um boneco.

     -- Um boneco?!

     -- Exactamente, a cabeça e o tronco de um manequim… sentado a seu lado, preso ao banco com o cinto da discórdia. Com uma camisa vestida, um boné, óculos de sol… com os reflexos dos vidros, passa por ser um amigo e ele já não o manda parar.

    (…)

     -- Estou mesmo desejoso de arranjar esse anjo da guarda. Ah, espere: e onde raio vou desencantar um manequim? Nunca vi uma loja que vendesse manequins…

     -- Eu empresto-lhe um – acrescentou automaticamente Valério, que continuava a explorar a loja de artigos desportivo, o que se podia chamar o seu estabelecimento-âncora de outros projectos mais arrojados e efémeros. – Daqui a bocado damos um salto à loja e arranjo-lhe um acompanhante, à borla! Só faltava mesmo meter-me neste ramo, de acompanhantes masculinos. Ah ah ah! Raios o partam a si, só espero que não dê com a língua nos dentes, porque não quero apanhar má fama…

     -- Ora, ora, o mesmo digo eu – observou Francisco Lobato, fazendo-se encabulado.

     E com essa réplica espirituosa fizeram grande galhofa, divertidos e aliviados.

 

*

 

     Francisco Lobato só voltou a experimentar a tão arisca e volátil joie de vivre nos princípios de Abril, quando Mariana Calhandra o avisou, na véspera, que tinha de fazer outro exame, pelo que ficaria dois dias – rigorosamente, duas noites – em sua casa, para matarem as saudades que quase os matavam a eles.

     Foi buscá-la à estação do Oriente e, com a ansiedade e o alvoroço que o dominavam, esqueceu-se de recambiar para o banco de trás o colega que o protegia nas redondezas do Lodaçal, o que, a alguma distância, confundiu Mariana:

     (…)

     -- Infelizmente, há muita gente com ruim interior e com poucos miolos e, se alcançam certas posições com poder de interferência na vida dos outros, podem dar com um em doido ou levá-lo a desgraçar-se – observou Mariana, bastante aborrecida com aquela situação absurda e inquietante. – Esse fulano tem uma pancada qualquer e a polícia tem obrigação de tomar medidas para rejeitar pessoas com taras, não só em defesa do cidadão comum como do seu próprio prestígio. Como é que dão uma farda e uma arma a uma pessoa notoriamente desequilibrada?!

     -- Mas alguém se rala com isso? Se calhar, até lhes convém… alguém que espezinhe as pessoas sem que eles lhes dêem orientações expressas nesse sentido, pelas quais teriam de responder.

     (…)

     Claro, mal entraram em casa, Mariana foi a correr para a casa de banho e Francisco aproveitou a eternidade que ela gastou a lavar-se e  a retocar a escassa maquilhagem que usava para reflectir na táctica de abordagem ao tema que ela elegera pouco menos que um tabu: a sua misteriosa doença – provavelmente sem má intenção, mas apenas porque, não atribuindo demasiada importância ao assunto, o mal que batia à porta não chegaria a entrar por ser indesejável.

     (…)

     Mas, malgrado o tom despreocupado que emprestava às perguntas e a ternura que jorrava dos seu olhar meigo, Mariana não se deixou contagiar pela sua afeição nem cedeu ao tocante interesse dele e respondeu, como sempre, com evasivas, envoltas num plástico liso de displicência, atado com um elástico de agastamento, formando no topo um exuberante laço de impaciência.

     Francisco não insistiu e nos dois dias seguintes limitou-se a perguntar-lhe se os exames tinham corrido bem, se não se sentia cansada, dorida ou ansiosa, primeiro, porque já percebera que ela, por razões de sensibilidade ou de educação, tinha pudor em falar dos seus achaques, o que ele devia respeitar, por delicadeza e respeito pela sua dignidade, e em segundo lugar porque também lhe parecia evidente que, se ela tivesse um problema sério, decerto que, por muito empenho que pusesse na dissimulação, para não amargurar a sua vida e para não o inquietar a ele, haveria momentos em que essa defesa artificial cederia à preocupação real e profunda e não poderia deixar de se mostrar nervosa, triste e abatida, com bruscas mudanças de humor, afrontamentos repentinos, respostas ríspidas e longos silêncios de embrutecimento, e isso nunca se havia verificado, logo, a moléstia que a atingia seria um tanto misteriosa e um pouco exasperante, mas, como nem sequer apresentava sintomas de sofrimento ou incómodo, não podia ser muito grave. 

    (…)

*

 

    Depois do almoço, Francisco Lobato foi informado pelo seu chefe de secção de que a jornada de tarde era só até as dezassete horas e que depois devia ir para casa e fazer uma soneca, porque tinham uma missão especial a cumprir de madrugada, a qual não se dignou especificar.

     (…)

     O encontro para a realização do trabalho especial ficou marcado para a uma da manhã num parque de estacionamento e Francisco Lobato começou por achar estranho que a equipa fosse exactamente a mesma que, há tempos, tinha ido fazer um burburinho no bar de alterne –  ao qual faziam agora segurança. A carrinha de nove lugares também lá estava à espera deles, mas as semelhanças acabavam aí, porque foram divididos em três secções de três elementos, que actuariam em três sítios diferentes, e o grupinho de Francisco Lobato foi reforçado com três elementos femininos cujos trapos das três não davam para cobrir uma modestamente, recebendo os seis ordem para se meterem na carrinha e, às duas da manhã em ponto, depois do trio de fêmeas provocantes electrizarem os clientes da discoteca e de esbofetearem os mais atrevidos, incendiarem quanto pudessem o ambiente, devendo, no entanto, e na medida do possível, porem-se na alheta antes da polícia começar a identificar os desordeiros.

     Com instruções tão claras e como já iam adquirindo prática a armar banzé, a missão foi cumprida com pleno êxito e sem sobressaltos, excepto um desafio bizarro que uma das suas parceira fez a Francisco Lobato, depois de o arrastar para os lavabos, aparentemente para não serem molestados pela rixa geral:

     -- Apifa-me uma chapada com ganas!

     Estremecendo com o pedido insólito, insólito e abstruso, porque se ela gostava de as comer, só tinha de ficar no meio da algazarra e seria aviada generosamente, Francisco Lobato ficou um bocado a olhá-la fixamente e depois observou sem disfarçar a surpresa:

     -- Mas que raio de porra te deu?

     -- Puxa a culatra atrás e despacha-te. Força!

     -- Mas queres mesmo que te bata?

     -- És atrasado mental ou quê? Venha de lá a galheta, que já tarda, e temos de nos pôr a mexer daqui para fora.

     -- Eu não sou uma máquina que se põe a funcionar carregando num botão. Se queres que te bata, bato, mas quero saber por quê.

     -- Pagaram-nos quinhentos para fazermos o espectáculo e prometeram-nos outro tanto se tivéssemos o azar de levar umas lambadas, porque o nosso coiro é a nossa ferramenta de trabalho, percebes? Com tantas que já mamei de borla, não vou desperdiçar uma que me rende mais quinhentos. Alça a mão, seu sonso.

     -- Com certeza, quem pede é porque precisa – comentou gravemente Francisco Lobato, disparando um bofetão que a fez rodopiar. – Queres outra no outro lado para equilibrar?

     -- Vai-te foder, bruto!

     Quando chegaram à carrinha já lá estavam os outros todos, tensos e ansiosos com a demora deles.

     -- Ela levou umas lambadas – esclareceu desnecessariamente Francisco Lobato, apontando com o queixo para o rosto vermelho da rapariga, mais colorido com uns laivos de sangue que tinham pingado do nariz e que ela espalhara à volta da boca. – Não foi fácil tirá-la daquela balbúrdia. Também levei uns socos nas costas, mas não tem importância.

     -- Foram identificados?

     -- Nem por sombras.

     -- Óptimo. Toca a andar.

     Como lhe tinham dado dispensa de manhã, Francisco Lobato, embora tivesse acordado à hora do costume, deixou-se ficar na cama a desfrutar da mandria e a reflectir na aventura dessa madrugada.

     (…)

     Às dez horas foi passear o Rex, sem itinerário pré-definido, e, passando em frente do Café Caravela, achou que valia a pena atravessar a rua para beber uma bica e comer um bolo e foi no estabelecimento que lhe comunicaram duas notícias, que estavam a pôr a freguesia em alvoroço, que ele não pôde deixar de relacionar com a sua aventura e as suspeitas que o embaraçavam, as quais eram: às duas da madrugada, praticamente ao mesmo tempo, duas ourivesarias tinham sido alvo de tentativa de assalto ou de vandalismo puro, na medida em que partiram os vidros das montras, apesar do gradeamento de metal, e (dizia-se) teriam sido furtadas algumas peças, mas não havia sinais de terem sido forçadas as portas, se calhar porque não teriam tido tempo para isso.

     De modo nenhum, discordavam outros, tinham tido tempo para isso e para muito mais, porque na altura os carros-patrulha disponíveis estavam todos na discoteca onde decorria uma sessão de porrada de criar bicho.

     (…)

     Se os ataques às ourivesarias e a falsa lavagem da honra das desavergonhadas que lhes tinham sido impingidas ocorreram em simultâneos, até um mentecapto não podia deixar de concluir que tinham representado uma comédia em três actos e o que fora destinado ao grupo dele era o mais vexatório, porque tinham sido duplamente manipulados: para realizarem uma coisa que voluntariamente não aceitariam fazer e porque serviram de fantoches para entreter a polícia enquanto outros interpretavam a parte principal de um enredo cuja trama e móbil lhes fora ocultada.

     Duplamente instrumentalizado numa pura manobra de diversão, em que nada era o que parecia ser, Francisco Lobato ficou bastante abatido ao concluir que o fraco papel de que os julgavam capazes era uma tremenda desconsideração e uma clara demonstração da falta de confiança profissional que depositavam neles os três, com atributos e graduação apenas suficiente para acompanharem galdérias contratadas à hora, mas, ponderando a missão atribuídas aos outros colegas, compelidos a uma actuação que se podia chamar de alta criminalidade, sentiu o sangue esfriar-se nas veias e uma névoa turbou-lhe a vista, porque teve então perfeita e completa noção de que arranjara um ganha-pão que ainda um dia lhe ia dar também água para fazer refeições clássicas durante anos, imperturbavelmente à sombra.

     Decididamente, aquela profissão não era para ele.

     Oh, que raio de ofício, que ofício de um raio!como diria Balzac..

     Mas naquele momento não tinha outro e precisava de meter lastro todos os dias e pagar as facturas que regularmente encontrava na caixa do correio.

     Paciência e coração ao alto, portanto. Porque um pobre não faz escolhas: adapta-se. Como pode e lhe consentem.

 

*

 

     Em Maio desse memorável ano de 2014 – porque terminava o segundo interregno de efectiva ocupação estrangeira de Poortugal –, com o tempo a aquecer e a atmosfera a desanuviar-se, Mariana Calhandra decidiu-se repentinamente a tornar a época ainda mais aprazível.

     -- Estou com ideias de te fazer uma visitinha.

     -- Que maravilha – exclamou prontamente Francisco Lobato, deslumbrado com o alvitre. – Quando vens?

     -- Um dia destes… Quem sabe, talvez amanhã.

     -- Amanhã é o melhor dia da minha agenda… sobrecarregada.

     -- Então espera-me amanhã.

     -- Vens por quantos dias?

     -- Não sei ao certo. Muitos, talvez. Até que te aborreças de mim.

     -- Então traz uma mala grande com a tralha toda. É capaz de ser o resto da vida.

     -- Pois, quem sabe?! – exclamou ela, num tom levemente enigmático, se calhar como mandam as regras da sedução.

     -- Se puder, vou-te esperar ao Oriente.

     -- Nada disso. Levo o meu carro.

     -- Para te pores a andar mais depressa quando te aborreceres de mim? – espicaçou-a Francisco, supostamente ressentido.

     -- Pois, quem sabe?!

     Mariana chegou no outro dia à tarde, toda donairosa e desempoeirada, de mãos a abanar, mas pediu-lhe que fosse ao carro buscar dois malões com os quais não podia.

     Enquanto ela arranjava espaço para os seus trapinhos, Francisco tentou averiguar quais eram os seus planos, escarafunchando em coisas laterais.

     -- E lá, como se governam na tua ausência?

     Mariana era empresária da construção civil, imagine-se. A primeira vez que ele lhe perguntou o que fazia e ela lhe disse que vendia tijolos e cimento ele pensou que ela estava a reinar, assenhoreando-se por graça de um negócio que seria, talvez, do pai. E assim era, em certa medida, ou seja, só no plano legal. Porque, depois do pai ter sofrido um AVC, foi ela que tomou conta do negócio. E não só para fazer e encaminhar encomendas, porque também conduzia a camioneta da entrega dos materiais. Uma mulher de barba rija, como se dizia lá para as bandas da rude e pitoresca vilória de Bolegos. Com sincera admiração, em vez de hiperbólico louvor vexante.

     Girando portanto a empresa à volta da sua pessoa, era natural que Francisco ficasse surpreendido com aquela espécie de férias sabáticas dela.

     -- Ultimamente tenho lá um primo a dar uma ajuda. Porque ele também precisa de comer e porque, felizmente, o negócio da construção civil começa a arribar um pouco. Tivemos uma fase muito má, em que passámos semanas sem vender uma telha, porque, naqueles sítios, são as pessoas remediadas que fazem mais obras, embora de pouco vulto, mas quando o governo lhes foi aos bolsos, palmando-lhes os tradicionais dois subsídios anuais e uma grossa fatia do ordenado, sofremos todos com o efeito de ricochete. Agora, com a recuperação de alguns rendimentos dessa gente, com mais poder de compra, os negócios parados começam a reanimar-se e criámos um emprego para o meu primo, que ficou dono e senhor do volante da camioneta, o que o deixa a ele muito contente e a mim sem saudades nenhumas.

     -- Em resumo, quanto mais cimento despacharem, mais tempo posso dispor de ti, ?!

     -- É mais ou menos isso.

     (…)

     A única sombra que pairou sobre o seu deslumbramento provinha dele próprio e nada podia fazer para a afastar, pelo menos nos próximos tempos, porque tinha o forte desejo, que sentia também quase como uma obrigação sem a qual a paixão que o arrebatava parecia postiça, de meter imediatamente férias para usufruir permanentemente da companhia dela, mas tal não era possível porque estava então em período experimental, segundo as novas agilizações das leis laborais, como pernosticamente chamavam ao novo modelo de insegurança laboral exigido pela Troika, e só depois, se o seu desempenho agradasse, rubricaria um contrato, provavelmente a termo certo, de seis meses, para, trabalhando no fio da navalha, aceitar todo e qualquer servicinho que lhe distribuíssem, fazendo as horas extras que fossem necessária sem ganhar mais um ceitil.

     Mas, pronto, o que não tinha remédio, já estava remediado, de modo que se conformou, como pôde, também já não faltava muito para terminar o período experimental, e daí a nada chegou Maio e apresentaram-lhe o contrato que esperava e passados uns dias foi falar com o patrão Elias, dizendo-lhe que a mãe estava mal e que o pai já estava velhote para tratar dela, pelo lhe fazia muito jeito repartir os dias de férias, em vez de os gozar todos de seguida, com o que o outro anuiu de pronto, porque também lhe convinha assim, evitando que, no pino do verão, alguns tivessem de fazer turnos de doze horas e mais e muitos com direito a horas extraordinárias, que agora, na tal reforma da legislação laboral, eram pagas com três vinténs, quando anteriormente custavam o dobro das horas normais, mas como era muita gente e com muito trabalho suplementar, no fim era sempre uma continha calada, que acabava por deixar também sem fala o patrão Elias.

     Uma vez por outra, Mariana dava uma saltada a Bolegos – para orientar o negócio, embora o primo lhe telefonasse regularmente, na maior parte dos casos para ela encomendar mais materiais ou para a consultar sobre fornecimentos a empreiteiros com fiados consideráveis, e também para evitar que os pais ficassem excessivamente preocupados com a sua ausência e, temendo o pior, viessem visitá-la e apanhassem um choque com metade da verdade (ou da mentira) que ela lhes impingira, porque lhes dissera que tinha «uma coisa má» (só assim) e que tinha de fazer tratamentos diários no hospital, o que desgraçadamente era verdade, mas informara-os de que, sendo o tratamento ambulatório, alugara um quarto numa pensão e, para melhor os convencer, quer dizer, para que eles nem por sombras duvidassem da sua palavra, deu-lhes a morada do apartamento de Francisco, cuja realidade equivalia para eles a cantar o fado nas adegas da Madragoa – e, enquanto ela se demorava em Bolegos, Francisco ficava com o coração aos pulos, aéreo e cismático ou impaciente e irritadiço como uma senhora na estação dos afrontamentos, temendo, sobressaltando-se, afligindo-se indizivelmente com a perversa suspeita de que ela se desabituasse de si, começasse a esquecê-lo e não voltasse.     

     Eram sempre períodos curtos, de poucos dias, mas, para ele, tinham a duração de meses e eram tão cruelmente sufocantes como um empalamento.

     O dia em que ela lhe comunicava que não se preocupasse com o jantar dessa noite era como se, após uma longa tempestade medonha, o sol explodisse de repente no céu borrascoso, que num ápice se tingia de um azul intenso e apaziguante, riscado pelas asas de aves endiabradas e impregnado dos odores suaves e saudáveis que se desprendiam dos bosques lavados, da terra enxuta e enxameada de corolas que respiravam, expelindo perfumes requintados como quem entoa cânticos celestiais em glória de eventos gratificantes e inolvidáveis.

     Havia uma dupla razão para o regozijo e excitação de Francisco, na medida em que, além de ficar naturalmente esfusiante com o reacender da paixão correspondida, a chegada de Mariana era também sinónimo de bastas horas relaxantes e de espirituosa diversão, porque ela era sempre portadora de notícias mirabolantes sobre vivências burlescas verificadas no seu território fabuloso, onde ainda imperava uma ancestralidade com vísceras delicadas e pulsões ardentes.

     -- Que coisa mais egoísta: a rir só para ela!

     -- Pensava que não se notava. É que me lembrei de repente de uma cena cómica e ao mesmo tempo enternecedora.

     -- Em público?

     -- Claro.

     -- Então eu também posso tomar conhecimento da mesma – concluiu Francisco, com postiça mofina.

     -- Bem. Houve festejos lá na terra e um espectáculo de despiques. Sabes o que são despiques?

     -- Por alto. Mas não me importo de ficar a conhecê-los de todos os ângulos.

     -- Os despiques, ou cante ao despique, são modas que se cantam em competição, que pode ser colectiva (um grupo contra outro) ou individual, e as cantigas tanto podem ser do género réplica adequada a um desafio proposto como a obrigação de dar continuação lógica, e quanto mais garrida melhor, à narrativa precedente. Percebes?

     -- Lindamente.

     -- Ora aconteceu que num despique entre uma rapariga e um rapaz as coisas aqueceram deveras, para gáudio de toda a gente, é claro, entoando ele, brejeiramente, que:

 

Um copinho

dois copinhos

três copinhos

de aguardente;

As mocinhas

da minha terra

fazem andar

um homem quente

 

ao que ela lhe replicou fogosamente e num tom de reprimenda:

 

Um copinho

dois copinhos

três copinhos

de licor;

Levas com um pau

na tola

passa-te logo

o calor.

 

     E, rememorando a galhofa que se seguiu à provocação e ao ralhete, Mariana riu com deleite, os olhos brilhantes de malícia e o rosto afogueado de excitação renovada, numa manifestação de prazer tão sincera e sentida que acabou por contagiar Francisco, primeiro espantado, depois divertido com a pilhéria musical e com o gozo requentado que ainda despertava nela.

     Noutras ocasiões contou-lhe, entusiasticamente, as últimas proezas hílares e as situações escabrosas em que os seus patrícios se tinham visto envolvidos na sua ausência.

     Uma vez informou-o que a terra estava suspensa da sentença que iria recair sobre um processo judicial que o tio Nepomuceno metera contra o motorista de um camião, pretendendo ser indemnizado pelos danos materiais e ofensas corporais graves que sofreu no abalroamento.

     A priori, parecia que lhe assistia inteira razão, porque o camião, em excesso de velocidade, investiu contra a sua carroça, parada à porta do quintal, enquanto descarregava lenha, a prevenir-se para o inverno; mas as coisas complicavam-se um bocado na medida em que, na altura, que também era a altura de alguns lenhos e de tábuas da espatifada carroça que jaziam debaixo de si, ele disse à Guarda que não se queixava de nada e só passado quase um ano é que meteu o processo para ser ressarcido dos prejuízos e das graves ofensas corporais.

     Confrontado na audiência de julgamento com a flagrante contradição entre o que havia afirmado na data do acidente e o que requeria tanto tempo depois, o tio Nepomuceno esclareceu com veemência e persuasão:

     -- Não renego o que disse, senhor juiz, mas deixe-me contar como as coisas realmente se passaram. Ora bem, depois do camião atirar com a gente de pantanas (a gente sou eu, a carroça e a mulinha... ai, ai... a minha querida mulinha, coitadinha – acrescentou, a fungar e esfregando os olhos com o encardido lenço de assoar) ... ah... hum... onde é que eu ia?

     -- Estava a dizer que foi de pantanas.

     -- Isso mesmo. Depois desta pessoa aqui presente e das outras duas que Deus haja irem de pantanas e aterrarmos no chão, todos escavacados, a ver estrelas em pleno dia, um moscardo furioso a bicar a mioleira, o senhor Guarda que ali está e não me deixa mentir debruçou-se sobre mim e disse-me «Tio Nepomuceno, tenho muita pena, mas a sua mula ficou muito ferida com o choque e tivemos de a abater com um tiro. E você, também está muito ferido?» e eu, é claro, respondi que «Ê cá fino, homéim    

     O tio Nepomuceno abriu os braços, num inequívoco gesto de rendição à fatalidade, e, meio voltado para trás, desafiou, num tom grave e compungido, o bom senso do público do 1º Juízo Cível:

     -- O que queriam que dissesse, ?!

     Noutra ocasião Mariana deu-lhe conta, com ademanes de grande marota, do singular diálogo travado entre o zagal Vitinha e o senhor Asdrúbal, à porta do monte do primeiro, onde o segundo foi em demanda dos pais daquele porque a sua cachopa apareceu de barriga e o autor do traiçoeiro pontapé nas costas devia ser o irmão mais velho dele.

     -- Adeus, moço.

     -- Saúde.

     -- O teu pai anda por aí?

     -- Nan senhora.

     -- E a tua mãe?

     -- Taméim nan senhora.

     -- Oh diacho, isto assim mau. Andam longe? Demoram-se?

     -- Foram à vila fazer o avio da semana.

     -- Pois assim estamos mal... Precisava de falar com eles. Por causa do teu mano Manele. Ao menos ele está?

     -- Taméim não. Foi deitar o nosso boi à vaca... olhe, já nan sei de quem.

     -- Se calhar também se demora...

     -- Conforme o nosso boi se despachar...

     -- Pois precisava dele... Sabes, é por causa da minha Aurora...

     -- Bem, se vossemecê nan pode esperar, eu posso dar-lhe o recado, quando ele chegar, mas não sei se isso chega para acertarmos o seu governo porque o meu pai leva cinquenta euros pelo boi, agora pelo meu Manele não sei quanto é que ele pede.

     Os reencontros eram sempre emocionantes e memoráveis.

     (…)

     Foi um verão a todos os títulos escaldante, que, sabiam de antemão, lhes iria deixar uma marca indelével.

     Mas, à medida que a temperatura atmosférica esfriava, Mariana começou também a revelar sinais de um progressivo, embora quase imperceptível, arrefecimento do seu contagiante entusiasmo e impulsos estonteantes, mostrando às vezes uma expressão de alheamento e uma espécie de envergonhado torpor a tolher-lhe o corpo que fora vibrante, os antigos gestos exuberantes, o olhar fulgurante que empalidecia numa poalha langorosa.

     -- Pressinto-te... cansada.

     -- Um pouco, realmente. Também, temos andado numa roda-viva... Como se diz lá na minha terra, elas não matam, mas moem.

     -- Talvez comeces também a ficar aborrecida deste ambiente urbano...

     -- Aborrecida, propriamente, não; diria antes um tanto alquebrada por sentir a falta do meu antigo ritmo, dos meus afazeres e preocupações. Passei demasiado depressa de um extremo a outro e o corpo dá sinais do abalo e a alma amolece.

     -- Podias frequentar um ginásio.

     -- A dar à perna numa passadeira rolante, sem sair do mesmo sítio? Nem pensar. Prefiro manobrar a grua da camioneta.

     -- Talvez precises, sim, porque... umas covinhas que tinhas no rosto já não as vejo há tempos.

     -- Seu malandreco – replicou Mariana, de pronto, mas falhando a querida entoação de falsa exasperação, porque a inocente alusão dele deixou-a subitamente alarmada, tomando perfeita consciência da inevitável degradação para que resvalava e que não desejava revelar. – Mas estás enganado: porque o rosto estará um pouco inchado e lustroso... de chorar pela minha antiga vida sadia.

     Três dias depois Mariana informou-o que tinham chegado más notícias de casa, que a situação da empresa estava embrulhada e que era indispensável que ela fosse tomar as rédeas dos problemas, pelo que tencionava partir no dia seguinte, com muita pena – porque deixava a vida airada para ir enfronhar-se em massacrantes ralações, acrescentou, numa deliberada provocação, para desdramatizar a tensão que sentia adensar-se na sala –, mas, também, já se divertira bastante, durante uma temporada bem mais longa do que tinham previsto, de maneira que não havia razão para queixas, antes pelo contrário, deviam dar graças por tudo ter corrido de feição e usufruído de uma felicidade que não supunham estar-lhes reservada e que sorveram, maravilhados, até à última gota.

     Na manhã da partida, porém, Mariana caprichou em fazer uma surpresa, deveras estarrecedora, que Francisco jamais esqueceria – como ela efectiva e secretamente pretendia.

     -- Deixo-te o jipe. Quer dizer, é a minha prenda de despedida.

     -- Deixas-me… o jipe?! Mas que raio de música é essa?! Emaluquecestes ou dão-te venetas?

     -- Quero que fiques com o carro. Quero. Estás a entender?

     -- Claro que não. Nem posso aceitar. Um carrão desses... Ainda se fosse uma lata qualquer... Agora um carro desses... Um carro desses não se oferece. Ninguém ia entender… Julgariam que te engrolei.

     O chamado carrão era um jipe Porsche. Já com uma carrada de anos, mas, de qualquer maneira, era um jipe Porsche, um luxo que, novo, custava uma fortuna que nunca lhe passaria pelas mãos.

     -- Ora, ora, já é velhote e fez muita estrada. É um carro em terceira mão. Um velhadas. Quase a cair de podre.

     Em parte, era verdade: o jipe fora comprado em segunda mão por um emigrante estabelecido há muitos anos na Alemanha, que o vendeu a Mariana quando veio gozar a reforma para Bolegos e uma inesperada pataleta o pôs a conduzir um andarilho. Vendeu-lho por um valor inferior ao que teria obtido num stand de usados, só pelo prazer de, uma vez por outra, ver o seu carrinho na vila e, até, de ela o levar ou o trazer do café – porque, de outro modo, ela nunca poria o rabo num carro daquela classe.

     -- Já tenho aqui a declaração de venda, devidamente preenchida, só tens de assinar e ir à conservatória. E vais mesmo, que mando eu, senão zango-me.

     -- Mas que ideia maluca é essa?

     -- Já que tanto teimas, pronto, lá tenho de mandar às malvas o meu bonito gesto generoso e falar a verdade: prefiro que fiques com ele a vê-lo arrolado por um credor da nossa empresa. Satisfeito, seu curioso duma figa?

     -- Se ele é isso...

     -- Que homem mais esquisito – repisou ela com enfado. – Prefere esbulhar uma pessoa à beira da miséria do que agradecer uma prenda do fundo do coração.

     -- Tens toda a razão: prefiro lixar um credor que vos tenha trapaceado, para, assim, vingar o tal bom coração. Satisfeita, sua empedernida recalcitrante?

     -- Nós estávamos mesmo bons um para o outro – disse Mariana, soltando uma gargalhada divertida.

     -- Estávamos? Já não estamos?

     -- Eu estou de partida!

     -- Boa viagem!

     -- Obrigada, ó simpático. A sério: fico muito contente com esta despedida. Todas as despedidas anteriores me deixaram acabrunhada, mas esta deixa-me muito contente. Vou revivê-la muitas vezes. Tantas quanto puder. Espero que também nunca a esqueças e que a lembres com este espírito.

     -- Estás outra vez a variar?

     -- São as saudades da minha terra...

     -- Ou da estação.

     -- Por este andar ainda vou ficar é com saudades... do comboio.

 

*

 

     (…)

     Talvez para não ficar obcecado com os ardores das hormonas frementes, algum tempo depois Francisco arranhou outra inquietação igualmente absorvente e que lhe incendiava a imaginação embrulhada em crepes: por vezes, e cada vez com maior frequência, Mariana não atendia as chamadas e mesmo as mensagens escritas ficavam sem resposta durante horas, ao mesmo tempo que notava que a sua voz estava diferente, como se falasse com ele a pensar noutra coisa, noutra coisa que lhe oprimia o peito e lhe deixaria os lábios represos de dor e impotência, mas ela replicou, soltando um guincho que queria semelhar uma gargalhada trocista, que andava apenas um pouco engripada e sonolenta com os medicamentos e que ele não devia ceder agora aos seus fantasmas porque o Natal já vinha aí, pelo que faria melhor em se preparar para a receber inspirando-se na última despedida que era a oração que a sua alma rezava incessantemente.

     Com esse motejo, mais mofino que reconfortante, foi a última vez que Francisco ouviu a sua voz aflitivamente alterada.

     Nos dois dias seguintes Mariana não atendeu as suas chamadas nem respondeu às suas mensagens e depois deixou de conseguir ligação, como se o telemóvel estivesse sempre desligado, o que o deixou à beira do desespero, por não ter qualquer outro meio para averiguar o que se passava, temendo que ela estivesse realmente mal com a alegada gripe e que, por isso, o aparelho tivesse ficado sem bateria, embora tentasse esconjurar o pânico que dele se ia apoderando imaginando que talvez ela tivesse perdido ou partido o telemóvel e, como andava adoentada, aguardasse que se recompusesse para ir comprar outro.   

    Passados cinco dias de desmedida aflição, durante os quais pouco comeu e pior dormiu, Francisco Lobato recebeu finalmente uma chamada de um desconhecido que pretenderia tirá-lo do desassossego febril que lhe deixava a alma exangue e os nervos incandescentes:

     -- Eu sou cunhado da Mariana e telefono a pedido dela. Ultimamente ela passou muito mal e... a situação foi-se agravando... enfim... estas coisas custam, mas temos de ser fortes... Ela já lhe tinha pedido para ser forte... Seja digno desse pedido. Ela esperava essa homenagem e... Bem, foi ontem a cerimónia, mas só hoje lhe ligo porque ela assim pediu... Está? Está lá? Está? Está aí? Homessa, o número desapareceu!

 

*

 

     Só no dia seguinte à tarde, depois de comprar outro aparelho, porque quando entendeu a terrível notícia que o desconhecido que lhe queria dar com a suavidade possível, levantou-se num salto eléctrico do sofá e espetou com o telemóvel na parede em frente, Francisco arranjou coragem para ligar ao funesto mensageiro a pedir detalhes sobre a galopante enfermidade fatal de Mariana.

     Se antes ficara e andava possuído de uma exaltação destemperada, à medida que o homem lhe ia dando pormenores o seu frenesim esvaziava-se como um balão, deixando-o hirto e frio de incredulidade: afinal a tragédia não desabara subitamente, porque Mariana adoecera há muito, sem disso se aperceber, e só em Abril se descobriu, demasiado tarde, que tinha um cancro no pâncreas e que o desfecho final estava marcado... talvez antes do fim do ano.

     Restavam-lhe apenas uns seis meses de vida e caprichou em dedicar quase quatro a ele – conclusão automática que deixou Francisco Lobato profundamente emocionado. Pela dádiva ímpar, pela dedicação absoluta, sem o mínimo cálculo de retribuição, e pelo esforço titânico que ela tinha feito, permanentemente, para não lhe suscitar a mais leve suspeita, de modo a que ambos pudessem usufruir plenamente de uma vilegiatura incomparável e inolvidável.

     Que mulher determinada e corajosa!

     Mas, agora, em retrospectiva, percebia finalmente algumas decisões e atitudes dela que na altura havia considerado um pouco extravagantes, lambuzando-o de algum desconforto momentâneo.

    (…)   

     Recapitulando esse episódio exaltante e a persistência dela, mesmo depois de regressar a sua casa, em o instigar a suplantar as saudades reconstituindo essa despedida, percebeu também e enfim a súbita partida dela: queria poupá-lo ao doloroso espectáculo da sua degradação física, que sabia ser acelerada, como efectivamente foi, mormente depois dos jocosos comentários dele sobre a suposta mandria dela e os prenúncios de dilatação da sua silhueta, sugerindo ele, brejeira e inocentemente, que estava a engordar com a boa vida e a boa mesa, quando ela terá percebido nesse instante, com uma amargura indizível que disfarçou com a sua indómita força de vontade, que entrara enfim na antecâmara de uma disformidade geral que iria transformá-la num monstro luzidio e balofo – oh, como o torturavam as palavras levianas, a roçar a crueldade, que então proferira, num chiste provocatório e ternurento que terá dilacerado a alma a quem já estava em vertiginosa contagem decrescente, embora procurasse tirar algum conforto do facto de tal comentário ingénuo e inapropriado ter contribuído para ela tomar então a decisão que há muito teria planeado realizar quando soasse o primeiro sinal de alarme.

(…)

*

 

     O destino funesto trucidara a boa e virtuosa Mariana, num ápice e inapelavelmente, e parecia que se preparava para fazer o mesmo ao anódino e esforçado Francisco, sobre quem, nos últimos tempos, começara a desabar um caudal de dissabores tão improváveis quanto implacáveis.

     Nas vésperas do Natal foi chamado à presença do sócio-gerente Elias, não para lhe dar a prenda tradicional, nem que fosse apenas uma mísera nota de vinte euros dentro do envelope com o contrato de trabalho sem termo, como era expectável e julgava merecido e justo, mas, muito pelo contrário, para lhe comunicar que a empresa não tencionava renovar o contrato a termo, cujo prazo de seis meses estava a findar.

     -- Damos por finda a sua prestação de serviços – disse, num tom neutral, indo directamente ao fundo da questão, como era seu timbre.

     Francisco Lobato sentiu uma vertigem e um sopro no coração, mas cerrou os punhos para não deixar escapar a pouca energia que o sustinha nas pernas frouxas.

     -- Não temos nada a dizer em seu desfavor – acrescentou no mesmo tom pausado e frívolo, olhando a vítima como se mirasse um manequim numa montra – e, se for preciso, até lhe passamos uma carta de recomendação. O caso é que chegámos à conclusão que não tem vocação para este trabalho, o que lamento.

 (…)

     Não, decididamente, Francisco Lobato não tinha a mínima vocação para integrar um quadro de segurança privada; mas nunca era tarde para remediar um erro – em parte originário e em parte superveniente, porque ele estava secretamente destinado a ser toupeira nas seguradoras, mas até à data não tinham conseguido incluir nenhuma na carteira de clientes da Inter Manus.

     -- O senhor é um homem para trabalhar no interior de uma seguradora e não para ficar de plantão à porta. Enfim, como diz o povo, cada macaco no seu galho.

     Elias concluiu o comentário acintoso com a focinheira arrepanhada num esgar divertido e orgulhoso, como se tivesse proferido um axioma lapidar.

     (…)

 

*

 

     (…)

    Depois de ter mergulhado no desespero mais cruento e alienante durante vários dias e noites de que perdeu a noção, praticamente sem comer nem se preocupar com a sua higiene pessoal, num estado febril e obsessivo de perfeito alucinado, entorpecido numa vigília angustiosa e sobressaltada, numa certa manhã de meados de Janeiro, finalmente derrotado também pelo cansaço do delírio devorador e caindo enfim algumas horas nos braços acolhedores de Morfeu, Francisco Lobato acordou de repente possuído de uma serenidade – que, de imediato, também lhe causou um calafrio de desconfiança – e de um arroubo de determinação desafiadora e, saltando da cama com uma agilidade que julgava já não possuir e contemplando, nauseado e estarrecido, o estado lastimoso em que se encontrava o seu quarto de dormir e as outras salas que percorreu com passadas firmes e olhar reprovador, decidiu que estava na altura de esconjurar o horrendo feitiço das cruéis adversidades e lutar bravamente pela salvação da sua dignidade pessoal naufragada.

     O demorado banho com água muito quente revelou-se uma óptima ideia para se livrar do sarro da negligência e do desalento e injectar vigor nos músculos elanguescidos, recuperando ao mesmo tempo a mobilidade dos membros, leveza do espírito e a elasticidade da mente, de maneira que, quando pegou nos apetrechos para se barbear, sentia-se completamente renascido e revigorado para se enfronhar novamente na luta pela sobrevivência na selva urbana com que estava familiarizado.

     Começando por arrumar o quarto, que mais parecia o covil de uma fera, Francisco Lobato pôs também um pouco mais de ordem nas outras divisões, mormente na cozinha, que estava pavorosa, e a seguir, e porque entretanto o estômago reclamava também as mesmas atenções, resolveu-se a preparar o pequeno-almoço… com o que existisse nos armários e no frigorífico. Não encontrando, porém, nada adequado a preparar uma refeição matinal – nem leite, nem biscoitos, nem ovos, nem sequer pão mais tragável que a lingueta dos sapatos –, meteu a carteira no bolso de trás das calças de ganga e saiu para a rua para adquirir as provisões que lhe faziam falta, nesse momento e nos próximos dias.

     Já estava nas escadas quando se lembrou de repente que, desde o princípio do ano, havia uma moda nova inventada pelo governo para infernizar ainda mais a vida dos entroikados: o comércio estava proibido de fornecer os tradicionais sacos de plástico para acondicionar as compras, tendo o público de comprar outros ditos recicláveis a 0,10 € cada – pelo que voltou para trás para apanhar três sacos dos antigos, ofertados pelo mesmo mini-mercado onde ia abastecer-se.

     (…)

     Mas, além desse golpe baixo e descarado, Francisco Lobato desconfiava ainda de outra coisa, mais ampla e mais profunda: atrás dessa marosca talvez estivesse uma guerra entre duas indústrias exclusivistas e muitas vezes incompatíveis, que são as do plástico e... a do papel. Do papel que levou um rombo implacável com as novas tecnologias e que tentará recuperar algum terreno se conseguir impingir os seus sacos a milhentos estabelecimentos que vendem produtos leves, como farmácias, pastelarias, prontos a vestir, sapatarias, livrarias e por aí fora. Portanto, era lógico supor que atrás da medida ridícula talvez estivesse em gestação uma guerra fratricida entre gigantes de ramos diferentes e, se tal fosse o caso, a nau catrineta iria ter muito que contar, porque, se a indústria do papel é poderosa, nas suas costas estão as portentosas celuloses e à ilharga destas os soberbos fundamentalistas da eucaliptização global, ui, ui, uma guerra de titãs que faria tremer a galáxia – e desaparecer os peixinhos dos rios a jusante da fronteira, donde podem não vir bons ventos, mas em cujos casamentos continuarão a comer saudosas caldeiradas.

     A seguir passou pela padaria e, aí, Francisco Lobato foi obrigado a engolir o sorrisinho desdenhoso que lhe despertava a grandiloquência jurisprudencial do governo e as intrigas de bastidores dos novos senhores do mundo tecnológico e os velhos fidalgos arruinados que escreviam cartas de amor, sobre as quais ainda se colava mais um quadradinho de papel que também dava uma mãozinha aos alquimistas de pigmentos.

     -- O governo proibiu esses sacos – observou a empregada da padaria, olhando com repugnância o antigo saco de supermercado que o freguês procurava entregar-lhe para meter o pão e as carcaças. – Tem de comprar um dos novos.

     Francisco Lobato ficou perplexo com o comentário da mulher, que, por ser tão disparatado, lhe espicaçou a curiosidade intelectual.

     Mas que raio de confusão estaria ela a fazer, uma vez que era pacífico que os comerciantes não podiam fornecer sacos do modelo tradicional, mas entregariam os seus produtos em mão ou nos recipientes que os fregueses transportassem consigo, porque as mãos deles ou os ditos recipientes não integram o negócio jurídico de compra e venda de um bem específico.

     Para seu alívio, a solução ocorreu-lhe rápida e espontaneamente: claro que ninguém dessa gente alguma vez pôs os olhos em decretos do governo, pelo que alguém a teria advertido, traduzindo a disposição jurídica para a linguagem popular, de que «a partir de agora não pode aviar o pão nos sacos antigos» e a imbecil interpretou o aviso à letra e entendeu que, quando mete o pão dentro do saco que o freguês lhe entregou, está a aviar a mercadoria infringindo a lei!

     O mais provável era que todo o equívoco girasse à volta do significado (variável) do verbo aviar e, de certa maneira, ela até teria um niquinho de razão: in ultima ratio, quando mete o pão no saco, está a aviar pão! Em suma: a estupidez consegue realmente fazer raciocínios lógicos! O que também vale por dizer que um belo conjunto de argumentos lógicos e ordenados logicamente não induz a concluir que o seu autor é particularmente inteligente, porque, comprovadamente, lógica e inteligência são faculdades reflexivas distintas, que não só não se repelem uma à outra como o mais frequente é uma servir de biombo da outra.

     -- Minha senhora – disse Francisco Lobato, muito cavalheiresco –, eu vim aqui comprar pão e carcaças e, se faz favor, ponha a mercadoria em cima do balcão. Obrigado. Tome lá o dinheiro e dê-me o troco devido. Muito bem, o nosso contrato acabou quando conferi o troco e, agora, eu levo esses artigos, que já são minha propriedade, como eu muito bem entender, dentro deste saco, nos bolsos ou pontapeando-os até minha casa. Quando acordar, tenha um bom dia.

     Fazendo uma ligeira vénia respeitosa, Francisco Lobato saiu porta fora, dando o assunto por encerrado, porque não valia a pena discutir semântica com pessoas que não viam um palmo de luz à frente das lunetas dependuradas da ponta do nariz, como era uso entre os supostos intelectuais que viam perorar na televisão, embasbacadas por não petiscarem nada mas querendo mostrar o contrário às visitas.

     Não obstante a faculdade de encaixe patenteada, apanhou o caminho de casa um pouco aborrecido com o atrito apenas embrionário, porque o mesmo vinha demonstrar que, mais uma vez, o governo investia contra a população e obtinha uma vitória tripla, na medida em que conseguia criar um novo imposto sem contestação, a coberto de supostos objectivos sublimes, o povo e a imprensa tinham com que se entreter, ignorando os últimos resultados desastrosos do austericídio, e ateava-se mais um foco de guerrilha entre os entroikados, que, divididos, barafustavam uns contra os outros em vez de clamarem em uníssono contra ele.

 

*

 

     Com o almoço no prato, em cima da mesa da cozinha – repetindo gestos triviais que, lembrou com alguma incomodidade, há largo tempo não realizava –, Francisco Lobato, verificando casualmente que o relógio por cima da porta indicava 12H55, pôs o talher de lado e levantou-se para ir ligar o pequeno televisor, porque queria ver o telejornal das treze horas.

     (…)    

    Pouco depois o telejornal abriu com a notícia da morte de uma senhora de meia idade, directamente vitimada por hepatite C e indirectamente vitimada por um incompreensível braço de ferro entre o governo e um laboratório farmacêutico, porque há já algum tempo que foi aprovado um medicamento com uma taxa de cura daquela doença a rondar os 100%, mas o laboratório começou por pedir dezenas de milhar de euros por cada tratamento e o governo considerou tais valores inaceitáveis, de modo que o assunto ficou encravado e os pacientes condenados à morte quando têm cura; até que, fatalmente, se verificou um óbito real e não estatístico de uma pessoa à míngua de tratamento, que estava disponível, e o escândalo saltou para a praça pública e as labaredas da indignação estalejaram estrondosamente quando o primeiro-ministro fez de bombeiro-incendiário, esclarecendo que o Estado tem o dever de zelar pela saúde dos cidadãos, mas não a qualquer preço, cujo dislate se tornou ainda mais revoltante quando foi divulgado que, segundo um estudo encomendado pelo próprio Ministério da Saúde:

afinal a aquisição do dito fármaco, apesar de ser realmente caro, é um bom negócio para o erário público, porque permite uma poupança de cerca de 33 mil euros por doente;

considerando que os custos de tratamentos de cancros e transplantes de fígado importam, em média, em 44 mil euros  e, no fim, as pessoas acabam por morrer, o que ainda acarreta mais custos para o Estado com os funerais;

enquanto curadas continuam (ainda) a criar riqueza, a consumir e a pagar impostos, com os quais, designadamente o IRS, um doente da classe média, reembolsam o Estado em escassos dois anos), uma vez que, subtraindo 33 a 44, o letal fármaco da discórdia importará em 11 mil euros.

      Curiosamente, o abstruso prurido sovina estatal saltou para a ribalta  na mesma altura em que foi divulgada uma estranha negligência ou complacência das mesmas autoridades a comprar medicamentos mais corriqueiros, e portanto em doses industriais, logo tão comuns que não suscitam a curiosidade de ninguém, uma vez que, no âmbito de um procedimento de revisão de preços de 2015, cerca de 25% dos respectivos medicamentos foram sujeitos a acertos por valores inferiores, do que resultou, segundo dados fornecidos pelo próprio INFARMED, uma poupança de cerca de 15 milhões de euros para o Serviço Nacional de Saúde e 7 milhões de euros para os utentes.

     Quiçá pelo chamado efeito de simpatia, do tema particularmente delicado e controverso, disse seguidamente o pivot do telejornal que a assistência na doença era preocupante também por outras razões colaterais, tendo em conta, designadamente, que as últimas estatísticas indicavam que 10% dos doentes registados deixaram de ir a consultas/exames e 16% deixaram de comprar medicamentos, por carência de meios económicos para suportar tais despesas, em resultado directo e inevitável do rebaixamento de salários e mormente dos cortes nas pensões de reforma e dos cortes de subsídios diversos da segurança social por imposição da austeridade, a qual, disse-o também o primeiro-ministo, iria avante custe o que custar.

     A notícia seguinte era também estarrecedora e instrutiva:

uma IPSS tinha quatro carrinhas para recolha de bens para matar a fome (física) de gente carenciada, distribuindo diariamente cerca de 2500 quilos de alimentos a 600 famílias, que correspondiam a mais de 2.200 pessoas. Nesses trajectos passavam por muitas portagens e, nos anos de 2010, 2011 e 2012, acumularam uma dívida de 2.200 euros,  porque muitas vezes iam à payshop pagar as portagens e não constava lá nada. Além de alguma desorganização administrativa da concessionária e de dificuldades financeiras pontuais da instituição de caridade, era de sublinhar que a situação se mostrava inacreditável e triplamente gravosa para qualquer utente porque: a cada pórtico instalado nas antigas Scut (ex vias «sem custos para o utente») correspondia uma infracção, de modo que na mesma viagem podiam ser cometidas várias infracções que davam origem a outros tantos processos independentes de cobrança coerciva, agravando assim o montante das custas processuais a pagar, e uma portagem não paga de 0,45 euros era penalizada com uma coima mínima de 25 euros;

ora, a semana passada a devedora recebeu uma notificação segundo a qual haviam sido penhorados todos os bem doados por hipermercados que constavam de guias de transporte submetidas ao sistema de facturação da autoridade tributária, em cujos serviços corriam os processos de execução fiscal para cobrança coerciva da dívida, que, valendo-se de três guias de transporte de alimentos doados por hipermercados, emitiu uma ordem de penhora.

     Se é imoral e anedótico penhorar bens doados para alimentar quem vegeta na miséria em razão directa e inexorável da austeridade decretada pelo governo, o que mais crispou Francisco Lobato foi o método usado para a descoberta de “património penhorável” da executada: o acto inocente de introduzir no sistema informático as guias de transporte, que, sendo embora uma obrigação legal, por si só não acarreta quaisquer outras consequências; mas eis senão que, com a interligação de programas com finalidades distintas e independentes, tal acto foi alertar um outro serviço sobre um falso património penhorável.

     O controlo cada vez mais apertado das pessoas por parte das novas tecnologias começava a ser bastante assustador

     (…)

     E que dizer então da espantosa notícia divulgada pela BBC, segundo a qual uma empresa sueca estava a causar furor a nível mundial com a implantação de chips subcutâneos nos seus funcionários, alegadamente com o objectivo de lhes facilitar a abertura de portas e a utilização de máquinas, como fotocopiadoras, sem necessidade nem perdas de tempo com chaves ou códigos.

     Claro que o chip pode ter também funções que o portador nem sonha e toda a sua vida – por onde anda e com quem se encontra – passará a ficar vigiada, ainda não telecomandado, mas já completamente privado de liberdade pessoal; porque, obviamente, a experiência da empresa é um mero balão de ensaio para o desenvolvimento da tecnologia em futuro proveito de centrais de informação governamentais ou concessionadas.

     O Big Brother vem mesmo aí. Já de braços abertos, para nos acolher e proteger carinhosamente.

     Aterrorizado com esta perspectiva, Francisco Lobato levantou-se da mesa arrojando a cadeira com violência e foi desligar a televisão com um sopapo no botão off, suspirando depois de alívio, sem saber bem de quê.

 

*

     (…)

     O melhor método para a gente prestar a devida atenção ao que nos rodeia é apanhar de quando em vez uns entalões e, depois de ter conseguido atingir um nível de vida agradável e despreocupado e de ficar de repente duas vezes à beira da miséria e sem vislumbrar a mais rudimentar ferramenta para escalar o abismo escuro e desencorajante, Francisco Lobato procurou arranjar armas e bagagens para se precaver das traiçoeiras investidas de poderes maléficos e dissimulados – razão pela qual caprichara em assistir atenciosamente ao telejornal no dia em que tencionava operar o seu renascimento – e, portanto, estava então perfeitamente consciente de que o mundo em que queria embrenhar-se e conquistar um lugar ao sol não era convidativo e as suas portas encerradas pouco menos que intransponíveis, na medida em que:

o Fundo de Garantia Salarial tinha pago, no ano transacto de 2014, qualquer coisa como 176,2 milhões a 30.551 pessoas com salário em atraso – tendo aumentado em 5% o número de trabalhadores nessa situação relativamente a 2013;

estimavam-se à volta de 534 mil pessoas efectivamente desempregadas (251,7 mil em subemprego, 24,6 mil inactivos à procura de emprego mas não disponíveis, 257,7 mil inactivos disponíveis, que não procuram emprego), que, somadas às inscritas nos centros de emprego, davam uma taxa real de desemprego de 23,8% -- o dobro da apregoada oficialmente, e sem contar o meio milhão emigrado em quatro anos --, da mesma grandeza da de Espanha, sem manipulações;

uma afamada auditora estrangeira analisou, no ano anterior, 106.445 postos de trabalho, concluindo que se verificava uma inversão nas políticas salariais das empresas, sobretudo junto de quem ocupava cargos do topo, cujas remunerações subiram 3,31%, enquanto constatou uma perda real de salário de 4,94% entre quem tinha funções de gestão ou de administração, ao passo que as chefias intermédias e os quadros superiores também contaram com subidas salariais efectivas entre 0,97 e 1,64%;

além da natural competição entre estes desempregados, sub-empregados e falsos empregados, tinha que contar com as candidaturas a ganchos de boa parte de mais 1.075.507 (dados de 2012) de beneficiários de pensões sociais do valor de € 199,40, respectivamente, a quem tinham prometido um colossal aumento de 1,99 e 2,29 euros, ficando sem actualização os 600 mil pensionistas que recebem valores entre 274 e 379 euros, com carreiras contributivas superiores a 15 anos, que, podendo, também estarão interessados em arredondar as continhas;

atento o miserável nível de vida de cerca de dois milhões de cidadãos, de mais de um milhão de desempregados efectivos e das brutais reduções salariais de mais de meio milhão de funcionários públicos e os (ministerialmente chamados) colossais aumentos de impostos, não era de admirar que este país que (governamentalmente) está melhor apresentasse nos fins de 2014 um saldo de crédito malparado de 5,363 mil milhões de devedores particulares (quando no ano anterior foi de 5,159 mil milhões) e que também a cobrança duvidosa das dívidas das empresas tivesse subido de 11,91 para 13,88%, na mesma data;

como estas coisas estão todas encadeadas – e se se acrescentasse que, quanto à redução do défice em quase 6 mil milhões, 89,5% foi obtido à custa do agravamento dos impostos e só 10,5%  correspondia a redução da despesa –,  ficava explicado porque, nos últimos quatro anos, nasceram menos 20.000 bebés;

ou que a tiragem dos dois maiores jornais (ditos) de referência andasse agora à volta de 30 mil exemplares, quando há 15 anos era de 100 mil.

(…)

     Nitidamente, as hipóteses que esta sociedade dava a Francisco Lobato de poder refazer em breve a sua vida eram muito remotas, para não dizer meramente potenciais, ou talvez nem isso.

     Na verdade, estava e sentia-se encurralado e isolado.

     Porque nem das autoridades – que estavam obcecadas com a redução do défice custe o que custar e que, ao mesmo tempo, e quiçá por isso mesmo, deixavam morrer os cidadãos à míngua de medicamentos porque eles não mereciam ser salvos a qualquer custo – podia esperar auxílio ou protecção, como já lhe tinham demonstrado quando perdeu o emprego na seguradora e lhe negaram o subsídio de desemprego com ardis achincalhantes, quando um polícia se entreteve a persegui-lo velhacamente e não dispôs de meios institucionais para o travar, quando foi contratado precariamente, resvalando para uma sujeição aviltante, e depois arbitrária e cirurgicamente despedido sem direito a contestação e, finalmente, quando a gestão criminosa de um banco o leva à falência e o Estado intervém e determina que ficam a salvo as auto-reformas do valor de 60 milhões de 20 desses gestores e, ao mesmo tempo, as poupanças de uma vida do pai, investidas nesse banco, são consideradas irrestituíveis como componentes da massa falida. 

 

*

 

     Sem vislumbrar uma brecha por onde romper, pelos seus próprios meios e regras, Francisco Lobato decidiu-se a colher opiniões e sugestões juntos dos seus amigos e conhecidos e o primeiro nome que lhe ocorreu foi o de Valério, provavelmente porque era o fulano mais engenhoso, ousado e determinado com que tinha lidado.

     -- Hummm... Como isto está, um emprego, um trabalho daquele que faz suor nos sovacos e calos nas mãos, só por misericórdia do altíssimo lhe cai na soleira. O melhor é pensar em desenrascar-se com um esquema qualquer.

     -- Bom, se não houver alternativa…

     -- Ainda há pouco me revelaram um maravilhoso: com 2 euros pode ganhar 2 milhões em 2 meses!

     -- Não me diga... Como é que se faz?

     -- Simples: numa loja chinesa compra um sabonete e uma tesourinha de lata. A seguir caça um drogado, leva-o a um balneário público e desencardece-o e corta-lhe as cerdas. Depois de o empapoilar com uma véstia sua, leva-o a um banco e abre uma conta em nome dele. Despeje-o onde o encontrou e reserve. Agora arranje dois ou três compinchas fixes, com bom porte e bem falantes e, com muita lábia e paciência, insinuem-se junto dos dirigentes de serviços públicos e grandes empresas que têm contratadas prestações de serviços de limpeza ou de segurança privada, intitulando-se administradores da empresa xis que é quem, efectivamente, lhes fornece aqueles serviços. Eles acreditam piamente porque, com o regime legal de sub-sub-sub-contratações, não fazem ideia qual é a entidade que realiza o trabalho. Ganha a confiança dos vossos supostos clientes, que enfeitiçaram com tretas, almoços e prendas, um dia comunicam-lhes que têm outro NIB onde devem passar a depositar o valor dos serviços prestados. Um método simples, rápido e tremendamente eficaz.

     -- E não se vai preso? – objectou Francisco Lobato, fingindo candura.

     -- A complexa e maleável estrutura jurídico-económica desta sociedade permite, se porventura não foi tecida para esse efeito, embora tendo outros actores em catálogo, a realização de mil e um esquemas desta natureza com riscos mínimos, desde que se tenha cuidado em não deixar rabos de palha atrás, que pode ser, por exemplo, o tal drogado, titular da conta, através do qual, laboriosamente, se podem identificar os autores do golpe.

     -- Pois é – lamuriou Francisco Lobato, impressionado com a astúcia de muitos filhos de uma mãe e vários pais incógnitos. – Pode-se ficar rico de repente ou ficar à sombra durante muito tempo e depois sair sem cheta e voltar tudo ao ponto de partida.

     -- Essa agora! Quem disse? Não é nada assim. Se vocês tiverem o cadastro limpo, serão condenados a xis anos de pildra, mas com pena suspensa. Portanto, ficam em liberdade para gozar, regaladamente, os tais dois milhões... que oportunamente transferiram para um paraíso fiscal onde ficaram a salvo das garras do tribunal.

     -- Ah, bom, então o crime pode compensar...

     -- Por isso mesmo há uma legião a pisar o risco.

     -- E um esquema mais soft e com menos riscos?

     Valério olhou o parceiro de alto a baixo, como se estivesse a avaliar as suas aptidões, e depois acrescentou num tom mais grave:

     -- Amigo, nestas situações de completo destrambelho da sociedade, com as estruturas todas de pantanas, há montes de dinheiro a ganhar com esquemas perfeitamente legais.

     -- Diga-me um.

     -- Como você é bom rapaz e fechou algumas vezes os olhos quando eu andava com aflições, digo-lhe dois. O mais chique e lucrativo: arranje uma empresa formal para, supostamente, é claro, dar assessoria a outras empresas interessadas em captar subsídios comunitários para formação profissional ou investimento. Cobra-lhes umas massas valentes sem fazer nada, senão enrolá-las com loas, e sem responsabilidades, porque se as instituições não considerarem os seus imaginários projectos relevantes tal critério é prerrogativa exclusiva delas. O segundo esquema é mais popularucho: cria uma empresa informal para arranjar trabalho no estrangeiro aos famintos desempregados da santa terrina. A actividade que desenvolverá é igual à anterior, só o ramo é que é diferente. É tudo muito simples e fantasticamente lucrativo, apresentando um único óbice: para arrancar, precisa de uns belos cabedais, para a entrada do arrendamento de um apartamento num sítio nobre e do respectivo mobiliário e pagar uns lautos almoços em sítios luxuosos. Tem um bom pé-de-meia?

     Francisco Lobato cerrou as mandíbulas e carregou o cenho, enquanto, num ápice, passava rapidamente em retrospectiva os seus desatinos recentes e os padrões que norteavam a sociedade presente e os seus guardiões, desde aqueles que matavam uma pessoa por lhe recusar em cigarro, sem que isso escandalizasse a população cujo único móbil era apenas o de viver um dia de cada vez, até aos que esfrangalhavam o sistema financeiro e, no lugar de irem presos, garantiam uma reforma anual de 9,6 milhões, e respondeu ríspida e categoricamente:

     -- Não, não tenho, mas sei onde a arranjar.

     -- Então despache-se e depois venha falar comigo. Talvez arranje um sócio...

 

*

 

     A ideia surgiu-lhe de repente e, de imediato, até o surpreendeu, porque nunca lhe ocorrera o mais leve rasto de um pensamento tão estranho e exterior à redoma dos seus códigos, mas o plano prático que o mesmo logo desenvolveu não nasceu em si, porque era apenas uma reminiscência que alastrava de uma vaga hipótese formulada por um ex-colega da Inter Manus.

     Uma manhã, quando foram visionar os registos das câmaras de vigilância do palacete que já esteve à guarda de Bento Pipa e de Damião Resende, que de ordinário passavam a alta velocidade, porque eram sempre estáticas, foram ambos surpreendidos com movimentos de pessoas, na rua e dentro de casa, e mais perplexos e alarmados ficaram quando, analisando as mesmas, verificaram que eram adultos e rapazinhos, concluindo depressa o óbvio, em duas penadas: altas horas da noite, o Solar dos Cisnes era um antro de pedofilia e, dessa vez, por qualquer razão tão misteriosa quanto poderosa, alguém se esqueceu, à chegada, de desligar o sistema de vigilância.

     -- Caralhos os fodam que nunca mais aprendem – resmungou o outro, atónito e indignado. – Com o escândalo que já houve com os outros figurões do processo Casa Pia e estes sacanas continuam a fazer o mesmo.

     -- Cá está a razão por que não querem aqui um guarda de noite... Bem me parecia esquisito deixarem um palácio destes ao abandono no meio dos bosques, quando um guarda era mais útil e saía mais barato que o sistema electrónico de vigilância. Agora, o que fazemos a isto, de que ninguém estava à espera? – perguntou Francisco Lobato, atrapalhado com a situação que era embaraçosa para eles próprios, por serem testemunhas de coisas que nem devia sonhar.

     -- Vamos fazer cópias para nós, porque o seguro morreu de velho, depois apagamos os registos e assobiamos para o lado.

     -- Não relatamos o facto?

     -- Eu assobio para o lado. Agora, tu, se quiseres cuspir para cima, conforma-te com a lei da gravidade.

     Francisco Lobato aceitou o conselho do colega mais velho e mais experiente no ofício e usou a saliva para lubrificar a garganta que tinha bastante seca.

     Nos primeiros tempos, a cópia do filme que guardava em casa causava-lhe algum desassossego, porque era mesmo material explosivo e porque se interrogava se não teria a obrigação moral de denunciar os crimes hediondos daqueles potentados que uma boa parte do país reverenciava como expoentes e ídolos da nata da sociedade, mas não sabia como agir sem que o mundo lhe desabasse em cima, trucidando-o numa cela ou num penhasco e, com a passagem do tempo, acabou por se esquecer do caso.

     Agora, porém, que estava na calha para ser trucidado de qualquer maneira, um obscuro mecanismo de auto-defesa desenterrara súbita e imprevistamente aquela incómoda recordação, que seria a sua tábua de salvação, sacando uns milhares de euros ao proprietário do Solar dos Cisnes, com os quais lançaria as bases para arranjar outro ganha-pão.

     Ao qual tinha pleno direito.

     Que, não obstante, lhe era negado tacitamente ou recusado explicitamente por quem tinha a obrigação de o ajudar a levantar-se.

     Ao mesmo tempo que, espremendo o repugnante criminoso, os seus actos acarretariam efectivamente uma punição e o seu autor ficaria a saber que o poder da sua rede social e da sua fortuna não era ilimitado e que os improváveis desígnios de qualquer um senhor anónimo são insondáveis. 

     Embora não tivesse veleidades de justiceiro, este efeito compensatório e quiçá parcialmente dissuasor da humilhação de terceiros indefesos da factura que iria apresentar era-lhe muito gratificante e absolutório.

(FIM)

 

 

 

 

 

Caixa de texto:  
Romance – 25 capítulos
+/- 720 págs

 

 

Reprodução do Capítulo 9 de MOSQUITOS POR CORDAS NO LODAÇAL

 

 

 

Capítulo 9

Mosquitos por cordas no Lodaçal

Um  romance global

 

 

 

Trama base da obra (que tem inúmeras peripécias)

Algumas pessoas do Lodaçal intentam criar um grupo de vigilantes para impedir que acabem por matar o Avião enquanto está hospitalizado, mas o hospital opõe-se e isso origina vários protestos públicos que degeneram em violência e mortes. Entretanto a empresa mal afamada (IN-EX, vulgo Inês) de onde ele foi defenestrado (vd. conto de 31/Dez. de «Um Ano Em Cheio») prontifica-se a indemnizá-lo a título particular (é nesta fase se surge este capítulo 9) e mais tarde promove-o socialmente, arranjando-lhe emprego e outros cargos para recuperar o respeito e a estima da população para, no fim, o fazer eleger presidente da novel Câmara, com o objectivo de o instrumentalizar para emprestar credibilidade ao projecto de construção do aeroporto alternativo ao da Portela, sob o qual se escondem negociatas obscuras.

O advogado del Prado é um personagem recuperado de uma outra trilogia do autor (ainda inédita), que decorre nos anos 90 e cujo primeiro volume é um litígio sobre a natureza jurídica e a titularidade de embriões que integram um legado hereditário, que agora reside episodicamente no Lodaçal porque está a fazer um mestrado em Direito e a quem é solicitado que defenda pro bono o rapaz que se meteu por maus caminhos e não tem ninguém que lhe acuda.  

 

 

 

Caixa de texto: 9

Uma semana sabática. Olé!

Finalmente, o doutor del Prado fez o gosto ao dedo, como sói dizer-se, e tirou uma semana sabática, aferrolhando-se em casa, alguns dias sem pôr os pés na rua, outros só o estritamente necessário para prover à sua sobrevivência. De quando em vez fazia retiros assim, cerrando os taipais sobre o mundo, que praticamente deixava de existir. Praticamente, porque, renunciando ao convívio social e à leitura da imprensa, lá de longe em longe sempre dava uma fugaz espreitadela aos telejornais, porque, enfim, a vida é breve e acidentada e entretanto pode bater a bota uma figura importante, uma dessas boas almas do mesmo naipe da sogra do outro, que, como ele dizia, era um anjo, que pena não estar no céu.

     Desta vez, a causa mediata do seu divórcio com o mundo louco e cada vez mais doidinho de todo foram os últimos acontecimentos traumatizantes da inesperadamente efervescente freguesia do Lodaçal, porque, como muito bem diz o outro, um terceiro, não o tal que tem uma sogra que é um anjo que já devia estar no céu, elas não matam, mas moem – no caso, o famoso causídico, embora seja provável que o referido terceiro também as amargue, e que a sogra que é um anjo também as sofra e o seu genro, enfim, desse nem vale a pena falar, coitado, poupemo-lo, que bem o merece, já que o PDG (MBA, CEO ou lá como se diz) das alturas não se compadece – e a causa próxima foi a necessidade de reflectir e analisar os elementos que colheu na biblioteca da faculdade e encaixá-los na sua tese de mestrado, o que implicava algumas alterações no texto já escrito, de modo a manter a fluência e pertinência do discurso, que frequentemente se perde com interpolações de extractos de obra alheia com a finalidade de dar arrimo à tese do próprio ou ilustrar as teorias em sentido diferente a que pretende retirar validade.

     Mas tal vilegiatura, embora querida, intelectualmente antecipada, ao fim e ao cabo foi numa espécie de hiato na sua azáfama cujo curso era modelado por contingências súbitas e invulgares, porque o primeiro dia de recolhimento e retrospecção teve um início que seria tudo menos auspicioso, começou bastante cedo e com uma solicitação anómala e indiciadora de tribulações absorventes – exactamente como iria findar o último dia das curtas tréguas do permanente armagedão.

     Quando a chinfrineira de grasnidos metálicos lhe arranhou os tímpanos dormentes, passava ainda pouco das sete da manhã, o primeiro movimento instintivo do doutor del Prado foi estender o braço direita na direcção da mesinha de cabeceira, crendo que era o malfadado telemóvel a desinquietá-lo e, curiosamente, no mesmo instante lembrou-se do doutor Ramiro Fateixa, que ou era madrugador ou gostava de surpreender as pessoas quando menos esperavam, talvez porque já havia uns tempos que não tinha notícias dele e receava que estivesse a chocar alguma, entalando-o de repente, mas, soerguendo um pouco a cabeça e verificando que não havia outra luz em cima da mesa além do pirilampo vermelho da extensão tripla, recolheu o braço e amaldiçoou, mentalmente mas com a gana toda, a alma excomungada que estaria dependurada da campainha da porta, decidindo no mesmo passo que desta vez não deixaria que o incomodasse numa hora tão imprópria e esperando que, não respondendo a três ou quatro campainhadas, a pessoa tivesse o bom senso de ir pregar para outra paróquia, ou que fosse tão ingénua que se convencesse que ou ele não dormira em casa ou tinha um sono pesado, mas como o malcriado do solicitante era do terceiro género, se assim se pode dizer sem ofensa indirecta a sensibilidades ainda sem catalogação homologada, e a chinfrineira estrídula arrepelava perigosamente os seus neurónios habitualmente privados da merecida e bem medida descompressão, levantou-se num acesso de furiosa desenvoltura e foi premir o botão do intercomunicador da porta da rua, aliás, a dar para um corredor, pois que vivia num terceiro andar.

     — Quem é? – rosnou com maus modos, como se pretendesse afugentar o intruso.

     — Sou eu. Quero falar consigo.

     Como não reconheceu a voz, que aliás lhe chegava um pouco distorcida pelo sistema de comunicação e lhe parecia um tanto hesitante ou soluçante, e suspeitando da apresentação tão desrazoável que parecia uma provocação, o doutor del Prado, rilhando os dentes, não esteve para modas e respondeu desabridamente e num tom agreste:

     — Ouve lá, meu filho da puta: ou vais curtir a bebedeira para outro lado, pelo teu pé, ou, se não te seguras nas canetas, chamo já a polícia para te levar de carro. Falo a sério! Portanto, desaparece, idiota!

     Mas já se sabe que os bêbados são teimosos como mulas e, antes de chegar à porta do quarto, uma nova campainhada deixou-lhe os nervos em franja.

     — Ainda aí estás, panasca dum raio?! Bem bom, aguenta só mais um instantinho, que já te levam a cavalo!

     — Chamou mesmo a polícia? – perguntou uma voz angustiada.

     — Não te avisei, meu atrasado mental?

     — Eh, man, segure os cavalos. Sou o Grunho!

     — És quem?

     — O Grunho! Chamou mesmo a polícia?

     — Não, grande tanso. O que queres a esta hora?

     — Já lhe disse, quero falar consigo.

     — Mas que raio queres de mim?

     — Preciso que me ajude.

     — Hum… que te defenda ou que te esconda?

     — Que me oriente – respondeu o Grunho, depois de uma breve hesitação, provavelmente porque estaria tentado a dizer «ambas as duas coisas».

     Foi então a vez do advogado embatucar, avaliando a situação.

     — Uf, que droga! Bom, está bem. Quando ouvires o estalo do trinco, entra, fecha a porta e sobe. É o terceiro andar, não te esqueças. Não é preciso tocares mais à porta, que ainda acordas a vizinhança toda. E há um que não conheço, se calhar é polícia, tem cara de chui e é bruto, bate na mulher, não dá os bons dias a ninguém, só pode ser polícia.

     — Acha que sim? – perguntou o Grunho, deveras angustiado.

     — Estou a gozar contigo, parvalhão.

     Em circunstâncias normais, o advogado não queria tão pestífero cliente em sua casa, mas, uma vez que parecia tratar-se de uma emergência, abriria uma excepção, a contra gosto, embora ainda não tivesse decidido onde o atenderia quando abriu a porta.

     — Ah, afinal são dois – resmungou à laia de saudação matinal, de tal maneira desagradado que mal lhes pousou o olhar em cima. – Eu não bato em ninguém e, para me baterem em mim, são precisos muito mais. Três como vocês como eu todas as manhãs, dentro de um papo-seco, a acompanhar o galão.

     — Ele desanda já.

     — Se já aqui está, é feio pô-lo a mexer. Não gosto nada de gracinhas destas, entendidos? Bom, entrem lá.

     Foi quando passaram rente a ele que atentou bem nos dois gnomos, mal entrouxados, um tanto molhados, focinheiras lívidas e olhar desvairado, nervosos como potros acossados por uma alcateia, e essa imagem miseranda amoleceu o coração do intrépido causídico, porque eram mesmo duas lástimas confrangedoras.

     — Entrem para aqui – disse, entrando na cozinha. – Sentem-se. Tu como te chamas?

     — Eu sou o Rubio – respondeu o outro rapaz, mais ou menos da idade do Grunho, intimidado, sem ousar olhar de frente o anfitrião.

     — Faz sentido – observou o causídico, passeando rapidamente os olhos pela carapinha que, se visse água e sabão com abundância e duas mãos enérgicas, apresentaria uma cor arruivada. – Hoje já comeram?

     — Ainda não.

     — Ainda não, senhor doutor corrigiu o advogado, doutoralmente.

     — Ainda não, senhor doutor repetiram ambos, com naturalidade e sem qualquer traço de melindre.

     — É que eu sou advogado, não sou motorista de TIR nem taberneiro.

     — Desculpe – pediu o Grunho pelos dois, num tom humilde.

     Voltando-lhes as costas com desenvoltura, em sinal de que o assunto estava encerrado sans rancune, o doutor del Prado tirou um pacote de leite do frigorífico, encheu três copos e meteu-os no micro-ondas a aquecer, um minuto, enquanto limpava um pouco a mesa. Depois pôs um copo diante de cada um, o terceiro em frente do lugar que iria ocupar e foi investigar o armário à procura de qualquer coisa que tapasse a cova de um dente. Quando se voltou, com uma caixa de biscoito ainda intacta nas mãos, os dois copos deles já estavam vazios.

     — Parece que aqueci o leite mais do que a conta e evaporou-se, hein?! Mas tudo como isso, há mais no pacote – acrescentou, pegando nos copos e abrindo novamente a porta do frigorífico, sem que os rapazes tugissem nem mugissem.

     Beberam o leite e tasquinharam os biscoitos todos três perdidos nos seus pensamentos, sorumbáticos, pachorrentos, dir-se-ia que quase cerimoniosos, de qualquer maneira, apreciando o evento que lhes reconfortava os corpos e animava os espíritos.

     — Têm um aspecto péssimo – comentou o doutor del Prado, recolhendo a loiça, num tom desprendido –, parecem dois ratos esfolados, mas espero que se sintam mais aconchegados. Onde passaram a noite?

     Responderam por mímica: encolhendo os ombros e revirando os olhos. Por aí. Nos umbrais. Debaixo das pontes. Fugindo da própria sombra. Sobressaltando-se com os suspiros um do outro.

     — Bem, está na hora da acção. Qual é o motivo da visita? Quero as coisas branco no preto, sem rodeios nem manhas, ou ponho-os na rua mais depressa do que entraram. Fui suficientemente claro?

     Aquiescerem ambos com acenos de cabeça e os olhos no chão.

     — Comecem a despejar o saco, todinho e duma vez.

     — A polícia está-me na cola – esclareceu o Grunho, de supetão.

     Como a notícia era trivial, o advogado encolheu os ombros e estendeu os beiços para a frente, a arremedar um pato mudo.

     — Por causa do que se passou o outro dia – continuou o Grunho, remexendo-se na cadeira. – Das brigas com os pretos. Põem-me as culpas todas em cima, mas eles é que começaram, por isso, estavam a pedi-las. Temos de os pôr no seu lugar senão querem tomar conta de tudo.

     — Estou a ver – observou o advogado, evasivamente. – Rivalidades e vinganças de bandos. O costume. A ocasião que aproveitaram é que foi péssima, porque provocaram uma carga da polícia. Sabem que morreu uma senhora grávida? Se com as vossas desavenças começam a arranjar sarilhos desses para as pessoas, vocês acabam mal, porque um dia começam a aparecer estendidos por aí. E ninguém se vai ralar grande coisa. Façam as vossas guerras lá nos vossos guetos e não a tragam para a cidade ou lixam-se à valentona, é o que vos digo. Se a orientação que querias era esta, pronto, está dada. E leva-a muito a sério se tens amizade ao pêlo, porque não chegam a velhos, podem ter a certezinha.

     — O problema é que a polícia…

     — Quer deitar a unha aos cabecilhas. É normal. O que é que te aflige? Não tens idade para ser preso e, mesmo que te metam num centro, na primeira oportunidade raspas-te, como já fizestes anteriormente, ao que me consta. Afinal, qual é verdadeiramente o motivo desse cagaço?

     — O motivo… senhor doutor… bom, é uma confusão!

     — Mas qual confusão?

     — São duas confusões, uma agora e outra depois. Repare: se me pilham, para me safar, tenho de contar o que se passou, por que razão desancámos nos gajos quando os topámos no meio da multidão, todos lampeiros, mesmo a pedir batatinhas. Ora, para a polícia acreditar nessa razão, é preciso convencê-la que estávamos só a castigar os culpados do enxovalho da professora, que não brigámos apenas porque nos deu na veneta.

     — Interessante – estimulou-o o doutor del Prado, com o cenho franzido e acenando com a cabeça.   Continua.

     — O senhor doutor não está a ver onde isto vai parar? Se castigámos os culpados é porque os conhecemos e, aí, é claro, a polícia vai querer sacar-nos os nomes, a bem ou a mal. Se os denunciamos aos chuis, perdemos a face e provocamos mais guerras. É o fim da macadada.

     O doutor del Prado ficou uns momentos a reflectir na situação e na arenga do candidato a cliente. Estava impressionadíssimo com o raciocínio do Grunho, que considerava pouco mais que um mentecapto, mas, fenómeno curioso e intrigante, a miufa dava-lhe asas à mioleira, sentindo-se encurralado, quase com a vida em perigo, identificava perfeitamente as ameaças que o entalavam e previa com extraordinária clarividência as mazelas do provável entalão.

     Curioso e intrigante, o chamado sentimento mais nobre, o amor, faz do homem mais lúcido e brilhante um idiota chapado, mas a fome e o medo fazem do homem mais bronco um descendente de um lince e uma águia, mas que coisa curiosa e intrigante.

     — Bem, parece-me que o melhor que tens a fazer é desaparecer uma temporada, até que isto esqueça, o que não vai demorar muito, porque as pessoas têm memória curta, infelizmente.

    — Desaparecer, como? Para onde? Tinha de ser para bem longe e isso não está ao meu alcance.

     — Mas, se ficas por aqui, com tantos inimigos à tua volta, mais dia, menos dia jogam-te a luva.

     — É com o que já vou contando, por isso mesmo… vim pedir a sua ajuda, quando isso acontecer.

     — Para te defender?

     — Defender, defender… que defesa tem a gente nas mãos deles? Só não quero é que abusem, se bem me entende.

     O doutor del Prado ficou um bom bocado a olhar fixamente o Grunho, sem bulir um cabelo, o que daí a nada estava a incomodá-lo, voltando a remexer-se na cadeira, e por fim observou com voz pausa e expressão grave:

     — Receio não me ser possível assumir a tua defesa. Sabes, nesta profissão há umas regras acerca da nossa maneira de exercer o ofício que se chamam deontologia. Por exemplo, um juiz não pode julgar um tipo com quem joga golfe frequentemente, porque, se são amigalhaços, mesmo sem querer e sem se aperceber, terá tendência a ser mais tolerante, claro, reconhece sempre a má acção que tiver sido feita, mas, enfim, conhece bem o homem, sabe não é maldoso, enfim, às vezes fazem-se coisa levadas da breca, são momentos… Estás a perceber? Pois bem, comigo passa-se um caso da mesma natureza: sou advogado do Avião, tu e eles são agora inimigos fidagais, embora não estejam em guerra aberta, e, portanto, não posso defender os dois, estar hoje em confidências com ele e amanhã contigo, aliás, mesmo vocês, sendo espertos como são, um dia começavam a desconfiar de mim e a pensar se eu não andaria a tirar lenha a um para queimar o outro. É ou não é? Portanto, as tais regras chamadas deontologia impedem-me que seja o conselheiro de duas pessoas que se querem mal uma à outra. Assim sendo, como é, chegada a altura em que precises de um advogado, terás de arranjar outra pessoa. Lamento desiludir-te, mas são assim as coisas. No entanto, não quero que fiques descoroçoado e muito menos que te sintas abandonado, por isso fica a saber que, de qualquer forma, vou manter-me atento e, se for o caso e conforme as circunstâncias, diligenciarei para que os abusos que receias não se verifiquem. Estarei atento, prometo-te.

     A exótica embaixada desandou um pouquinho mais animada e o doutor del Prado voltou para a cama a debater-se com um problema de consciência, porque não nutria a mínima simpatia pessoal pelo foragido e considerava-o mesmo o que se diz um patifório escrito e escarrado, porque o esquema de vingança em que enrolou o Avião, conduzindo-o para a morte e instrumentalizando terceiros de boa fé, mostrava à saciedade que era mesmo mau, falho de escrúpulos, o que voltara a sublinhar atacando desprevenidamente os seus rivais e escondendo-se atrás de uma multidão, manipulando os acontecimentos, indiferente às consequências, para satisfazer os seus impulsos homicidas, mas, apesar de assim ajuizar, e de certeza que não ia mudar uma vírgula no futuro, o seu inato instinto de justiça e os seus primados éticos impunham-lhe a obrigação de, sendo-lhe possível, zelar pela santidade daquele corpo que transpirava maldade por todos os poros, obviando ou interrompendo qualquer situação que degenerasse em aviltamento humano, de modo a que se não cumprisse o anátema do homo homins lúpus, no que, malgré tout, se empenharia sem repugnância e com o esforço adequado – tanto mais que, agora que com ele tinha privado e o viu frágil e amedrontado, não podia olvidar que era apenas um rapazola com quinze anos, criado um pouco ao deus-dará, nem ninguém que o domesticasse, porque a vida dos pais não dava para mais, ao mesmo tempo que estava sempre a ser espicaçado para ser mais feroz que as feras que o rodeavam na esperança de o comerem.

     De forma igualmente curiosa e intrigante, só passadas algumas horas o advogado se apercebeu que dificilmente podia cumprir a vaga promessa de estar atento aos alçapões no caminho do Grunho uma vez que estava decidido e determinado a divorciar-se do mundo durante uma semana, sem acesso à imprensa escrita e com a televisão desligada, mas tal constatação não lhe provocou qualquer tipo de incomodidade – de cuja ausência de pruridos também não teve na altura perfeita consciência –, quiçá porque o campo da mesma já era preenchido pelo incómodo que era quem o incomodava e, além do mais, sobreveio-lhe a fugaz lembrança de que sempre ia recebendo notícias através do telemóvel, muito embora considerasse de imediato que a detenção do rapaz, tratando-se de uma situação repetitiva, seria uma banalidade que não levaria ninguém a incomodar-se a transmiti-la a outrem, provocando incómodos desnecessários, a não ser que o assunto viesse à baila por arrastamento de uma outra notícia interessante, por afinidade ou oposição de assuntos, de maneira que se conformou com a negligência, ou a fatalidade, e passou adiante.

     Só que o mecanismo das lembranças, e em particular das recordações embaraçosas, tem uma dinâmica própria e um tanto arrevesada e o pretendido passo em frente redundou num passo atrás, aliás com óbvia lógica retroactiva porque o Grunho e a mulher falecida estavam umbilicalmente ligados, sem contar que os funestos acontecimentos o tinham marcado de modo indelével, porque eram emocionalmente arrasadores e porque adjacentemente punham em causa muitas balizas existenciais que construíra meticulosamente, e sem se aperceber quando nem como o doutor del Prado voltou a exumar o pesadelo dilacerante que foi o funeral da pobre vítima, no dia seguinte ao dos trágicos incidentes, às dezassete horas, com o falso pretexto de que os dias eram muito pequenos e enterros depois do sol-posto só os clandestinos, mas na verdade com o propósito envergonhadamente não assumido de fazerem desaparecer o corpo que era um embaraço problemático e, com ele, as interrogações que começavam a fervilhar nos espíritos chorosos e sobressaltados e que podiam tornar-se a faísca que voltaria a incendiar o rastilho da indignação geral que podia fazer explodir novamente o paiol das numerosas e recorrentes humilhações inflamadas pelas frustrações diárias.

     Seguramente que foi um dia atípico e tragicamente inolvidável para todos os que se encontravam no Lodaçal.

     A peculiar característica do luto colectivo que mais impressionou o causídico cáustico e mesmo um pouco cínico para não absorver mais mágoas que as pertencentes ao seu avio foi o silêncio positivamente sepulcral que caiu e de certo modo anestesiou a freguesia durante todo o dia.

     Mal se cruzavam os portais das habitações, o silêncio sufocante e opressivo tudo envolvia e manietava subitamente como uma emanação magnética do vazio cósmico representado, em pequena escala, pelas ruas surpreendentemente desertas e onde não se vislumbrava uma porta aberta. A ausência de tráfego automóvel, da omnipresente agitação dos peões, das revoadas de clientes a entrar e sair de estabelecimentos comerciais e serviços públicos, transformavam a malha urbana num cenário irreal, aflitivamente fantasmagórico, desenterrando e desentranhando terrores obsessivos e atávicos de um longínquo, remotíssimo pretérito em que o homem se descobriu só, frágil e sem socorro possível num mundo imensamente vasto e deserto, não obstante recheado de inúmeros perigos pressentidos e indetectáveis.

     A primeira vez que tentou sair à rua o doutor del Prado ficou como que fulminado, com os olhos esbugalhados perdidos no vácuo deprimente e corrosivo, as pernas hirtas e grudadas ao chão dos malditos como as varas de um espantalho escarnecido, que foi a sensação que logo o submergiu, diluindo-lhe as mais ténues e remotas energias do espectro em que se transformara num instante de magia tenebrosa, e, após uns momentos de completa estupefacção, e sentindo que algo ruía magneticamente dentro de si e o aniquilava sem remissão, numa hecatombe surda, inapelável, girou pesadamente nos calcanhares e voltou a entrar em casa, cabisbaixo, lívido, esmagado pela desolação de um mundo em que ele era o último moribundo inconsolável.

     A atmosfera meretrícia, essa sensação de abandono e o silêncio pesado como um manto de chumbo que se derramava sobre tudo e todos, condenando-os a uma imobilidade exasperante, manteve-se durante toda a manhã e grande parte da tarde, como se a freguesia tivesse sido devastada num conflito nuclear que só poupara as construções inanimadas e inúteis, e se, esparsamente, a quietude fantasmal do espaço era sulcada por um breve ruído sacrílego ou esventrada por uma estonteante silhueta herética, tais bizarrias anacrónicas só contribuíam para dar mais ênfase à pungente desolação que envenenava o ar, elanguescia os corpos e obliterava os espíritos.     

     Como se emergindo de um diabólico feitiço hipnótico colectivo, a freguesia só começou a ganhar vida e movimento à aproximação da hora em que a vítima cumpriria o ciclo de se tornar o pó que a consubstanciara, mas, paradoxalmente, a enorme legião de corpos tensos, rígidos, escuros e com movimentos mecânicos de geringonça emperrada ainda mais sublinhava a irrealidade do momento, semelhando um gigantesco teatro de fantoches macabros, o que deixou o doutor del Prado com as entranhas crispadas, os pulmões oprimidos e uma sensação de vazio ardente como se os seus neurónios estivessem a fritar – ao mesmo tempo que começou a desejar desesperadamente que fosse dada por concluída a cerimónia fúnebre, receando sucumbir à vaga angustiosa que quase o transformava num duende.

     À noite, em casa, depois de as fortíssimas emoções baixarem para um grau minimamente suportável, voltou a experimentar outro terrível desconforto, correndo tumultuosamente entre as margens escarpadas da indignação e da cólera, ao constatar que os noticiários televisivos não faziam a mais pequena referência aos acontecimentos. Era uma omissão inacreditável e arrepiante. As televisões que quase tinham transferidos os estúdios para o Lodaçal ignoravam agora os funerais de uma senhora grávida, vítima da brutalidade policial, e que, para tornar o caso ainda mais horrível e odiento, nem sequer era uma manifestante ou basbaque, encontrara-se de passagem no sítio errado e à hora errada, constando igualmente que teria marcas dos bastões em várias partes do corpo – o que, se fosse verdade, justificaria o enterro à pressa, sem velório, porque o corpo só foi libertado às dez horas do próprio dia do funeral. Aliás, ele já havia reparado que os jornais do dia concediam um reduzidíssimo espaço à concentração dos professores e à carga policial sobre as pessoas que se tinham juntado no largo fronteiro à escola secundária, informando somente ao correr da pena que havia a lamentar vários feridos nos «confrontos entre (sic) manifestantes e a polícia» e só alguns aditando que o caso mais grave seria o de «uma senhora grávida atropelada pela multidão (sic) em debandada», o que era algo estranho, mas julgou que as omissões absolutas e relativas derivassem da pressão do fecho da edição e do adiantado da hora dos acontecimentos.

     Agora, porém, juntando as pontas soltas, percebia claramente que a desvalorização dos protestos e da tragédia era uma estratégia, deliberada, perversa, comandada seguramente do alto, com vista a esconder a perfídia do regime e a obstar que a indignação popular alastrasse, fazendo tremer os pilares da colonização espiritual e chamando a atenção do mundo para os métodos fascistóides que ressuscitavam, seraficamente, camuflados por uma verborreia grandiloquente, ilusória como miragens e como estas dizimadoras da lucidez e de reacções sensatas.

     Chegado a este ponto da reflexão, o doutor del Prado sentiu-se mergulhar numa tristeza muito, muito grande, a par de um sentimento de impotência muito profundo e aflitivo, porque forçoso era concluir que a senhora morrera em vão e os seus assassinos ficariam impunes, perdera-se uma vida absolutamente para nada, na medida em que aqueles que criaram as condições para que o facto ocorresse não pretendiam considerar as funestas consequências da condução irracional que imprimiam às instituições e a população tão duramente castigada pelo tal «programa de reajustamento» – que já ameaçavam que duraria pelo menos mais vinte anos – nem chegaria a tomar conhecimento do martírio gratuito e sonegado, e esta atitude dos nossos pequenos seigneurs du monde amachucava-o muito porque era atentatória da dignidade humana que é sagrada e cuja noção só atingíramos após a passagem de muitos séculos e milhentas tribulações, para agora regredirmos num autêntico passe de magia (negra), e também lhe suscitava angustiosos e contraditórios pensamentos sobre as opções que se abriam e que seriam de recomendar à sociedade civil sobre a sua actuação no futuro imediato e a curto prazo, porque tripudiar sobre as suas responsabilidades era um aviltamento absolutamente inaceitável, mas desafiar os nefandos poderes instituídos, como se impunha, equivalia a sacrificar mais vidas numa espécie de holocausto clandestino e previsivelmente vão, inconsequente, sem qualquer finalidade senão a de multiplicar os focos locais de descrença e resignação, o que era igualmente inadmissível – e, todavia, era imperioso e era urgente resistir ao desvario na senda de um futuro risonho e tangível.

     Mas o caso é que ele próprio sentia minguar em si a esperança impulsionadora nessa miragem encantatória que se desvanecia na linha do horizonte que continuamente se afastava.

     Efectivamente, os últimos acontecimentos vinham confirmar e consolidar a sua herética predição de que, embora ainda de forma sub-reptícia, hesitante e pouco elaborada, estava mesmo em marcha uma conjura almejando subverter a arquitectura política das sociedades europeias, através do aniquilamento da classe média e a subjugação dos pobres pelo desemprego elevado e crónico e o pagamento de salários apenas de subsistência e o esvaziamento da protecção social e educativa, de modo a ser instaurado e criar raízes o modelo derradeiro do capitalismo que é o imperialismo financeiro especulativo, cujos passos iniciais começavam a ser dados nos pejorativamente chamados PIGS – e esta pseudo graçola insultuosa, proveniente dos jornais pertencentes apropriadamente aos tais especuladores, era e não podia deixar de ser particularmente significativa… da importância que nos reconheciam e da posição que desejariam reservar-nos no clube dos magarefes.

     Com efeito, apesar da economia nacional estar em ruínas e a população arruinada com os despedimentos maciços no sector privado e os sucessivos cortes nas remunerações dos funcionários públicos e reformados, o que voltou a fazer cair Portugal na escala dos países mais pobre da UE, eis que vem a dita UE e mai-lo FMI aconselhar ainda mais reduções salariais, alegadamente porque estão uns 5% acima da bitola certa para o tal reajustamento, quando no resto da Europa desenvolvida no mínimo se ganha o dobro e em vários países, que nem sequer são aspirantes a potências económicas, como o minúsculo Luxemburgo, o salário mínimo é mais do triplo do nosso, pelo que o tal reajustamento só pode ser ou um delírio de lunáticos ou um eufemismo maquiavélico.

     Obviamente, passados dias, com o povo intimidado pelas avisadas vozes dos nossos tutores cruéis, lá vem o governo luso titubear que a receita de emagrecimento ainda não está completa, que são precisos mais sacrifícios para a recuperação das finanças públicas e que no corrente ano se impõe uma poupança de 2,9 mil milhões de euros.

     Lançada a azorragada, acorrem os tenores do costume com a ladainha estafada de que o sofrimento é deveras grande, mas o nosso esforço heróico está a salvar a querida pátria, sendo mesmo afirmado com desplante e insensatez «a vida das pessoas tem piorado, mas o país está melhor», donde haverá que concluir que Portugal é um país que não é formado por pessoas, mas sim por estradas, pontes, estádios de futebol, rios, cerros e sabe-se lá que mais, que consubstancializam, portanto, o conceito de pátria e dão identidade a uma nação. Acresce que, se tal filósofo entende por país as chamadas finanças públicas, esse país está pior, porque com a salvítica austeridade a dívida pública continua a subir e, no mesmo passo, a riqueza nacional foi pulverizada com o famoso objectivo do empobrecimento, que criou uma taxa de desemprego (oficial) que andou nos 18% e que arrasou completamente o poder de compra da classe média, que, não consumindo, deitou abaixo o mercado interno e, sem uma coisa e outra, a receita fiscal, a principal fonte de financiamento do Estado, vem sofrendo uma erosão acelerada, o que origina agravamentos sucessivos dos impostos sobre o trabalho, que vão reduzir ainda mais o poder de compra, que se volta a reflectir no mercado interno.

     Colateralmente, e como prova suplementar da melhoria do país, sopra-se forte na trombeta da balança comercial que, pela primeira vez desde há mais de meio século, tem um resultado positivo. Porém, vai-se a ver e o ganho é de pouco mais de dois mil milhões, o que também se conseguia e já se conseguiu surripiando um subsídio ao funcionalismo, e, quanto ao aumento das exportações, já se sabe quais elas foram, produtos petrolíferos e carros e seus derivados de fabricantes que nem são nacionais, ao passo que a redução das importações é o resultado necessário do empobrecimento da população – e é assim que, irrealista e irracionalmente, os sintomas nus e crus da desgraça nacional são apresentados como o êxito estrondoso do triunfal programa de reajustamento.

     Desfraldadas as velas da manipulação, espalha-se paralelamente que também na cobrança das receitas fiscais a eficácia governamental é uma coisa nunca vista, pois que no último mês teve um acréscimo extraordinário de 10%. Porém, esmiuçando os números verifica-se que foi o IRS que subiu quase 25%, enquanto o IVA só subiu pouco mais de 4% e o imposto sobre os lucros das empresas (IRC) desceu 12%, devendo pois extrair-se da ilação triunfal de que: os rendimentos do trabalho (classe média), para além dos cortes, estão esmagadíssimos com a carga fiscal, a economia nacional, numa vertente, está paralisada, como o mostra o indicador mais fiável que é a cobrança de IVA (sendo que o insignificante acréscimo respeita ao turismo e a algumas transacções internacionais), e, noutra vertente, continua a resvalar para o abismo, porque a quebra acentuada de IRC é o efeito directo da falta de procura interna e das falências em catadupas.

     Os dados oficiais divulgados são um diagnóstico claro e indesmentível do colossal fracasso da teoria da austeridade para sanear as finanças públicas e se promover o desenvolvimento da economia nacional e, tendo esses valores uma leitura intrínseca, as afirmações em sentido contrário só podem indiciar que persistem no rumo catastrófico e ameaçam com mais reajustamentos porque são os cruzados de forças obscuras conjuradas informalmente na ganância insaciável, que estão a preparar o terreno para a implantação do último império global, o mais discreto e simultaneamente o mais atrabiliário de todos os conhecidos, porque não se instala na ponta das baionetas, sobre campos e cidades cobertos de cadáveres que causam repulsa e raiva e acirram vinganças, mas que se propaga com os cliques digitais, que os famélicos nem sonham, porque as suas mentes atrofiadas só lhe podem oferecer pesadelos.

     Sucedia ainda que a ânsia de ver resultados levava o fautores da programada desumanização do globo a cometer alguns abusos crassos que horrorizam até aqueles que preferem acreditar na virgindade de Maria e normalmente têm outros assuntos com que se ocupar quando o filho da virgem se porta mal, e eis que vinha o director de um jornal afecto à situação considerar intolerável que um secretário de Estado contrate mais um assessor, remunerado com mais de três mil euros mensais, ou seja, e como ele referia, a ganhar mais do que um director de serviços, mais que um juiz, mais que um coronel e o dobro de um professor; empenhando-se ainda em sublinhar que o mais espantoso do currículo do adjunto, de 24 anos de idade, eram três workshops num centro de formação de jornalistas, um estágio numa rádio com oito meses de duração e depois foi consultor de comunicação do partido do governo durante cinco meses, o que o tornava inegavelmente um especialista calejado, por faria suspirar qualquer membro governamental e por isso merecia ser remunerado em conformidade, embora o plumitivo definisse o caso como uma barbaridade.

     Uma barbaridade, o que lhe queriam fazer, considerou também o chefe dos chefes militares dos três ramos das forças armadas, que meteu os papéis para a reforma antes de findar o ano, sem disso dar cavaco às autoridades civis que mandam no país, para impedir «que o roubassem» (em mais de setecentos euros) com as novas regras de renovadas penalizações das aposentações para quem ainda não é um trambolho irremediavelmente inapto – atitude essa que causou grande desconforto nos governadores desta nova espécie de colonial penal, mas que, paradoxalmente, confortou outros porque são sempre auspiciosos os sinais de que a engrenagem não é perfeita, tem peças que avariam ou que saltam dos seus lugares, e se perdem, com estrondo, que talvez incomodem ou despertem alguns distraídos, ou encantados; o que é um fenómeno que se vem multiplicando, e nos sectores mais imprevisíveis, pois que, por exemplo, a deserção do general foi seguida por mais seis almirantes e, seguindo o vento noutra direcção, noticiou-se na mesma altura que a associação sócio-profissional da GNR já teve de conceder empréstimo a 3.854 militares e há outros 500 com o ordenado penhorado – o que não deixa de ser um índice particularmente revelador do processo de desarticulação da sociedade à sombra do famoso reajustamento de braço dado com a Dona Austeridade.

     Não obstante o ataque cirúrgico às células da identidade nacional, a laqueação pontual das artérias vitais da comunidade e a sangria inestancável da população, o doutor del Prado experimentou algum conforto no dia em que, ao abrir o correio electrónico, deparou com um texto anónimo ilustrativo de que os métodos de imbecilização e pânico colectivos vão efectiva e desgraçadamente quebrando resistências e, à la longue, é possível que consigam implantar um novo paradigma de sociedade que ofuscará a época medieval em vileza e exploração, mas entretanto e pelos meios possíveis os homens bons vão resistindo e lançando alertas, por vezes com o humor cáustico dos lapidados, como o do autor anónimo que descreveu a seguinte situação do futuro próximo, quando o estado concentracionário em que nos estão encurralando atingir o seu ponto culminante, apossando-se completamente da nossa identidade:

Telefonista (melosa): Pizza Clube, boa noite!

Cliente (afirmativo): Boa noite. Quero encomendar pizzas.

Telefonista: Pode-me dar o seu NIF?

Cliente (amável): Claro. Tome nota se faz favor: 6102 199 845.

Telefonista (numa cadência pausada): Obrigada, Sr. Lacerda. O seu endereço é na Avenida Pais de Barros, 19, Apartamento 11, e o número do seu telefone é o 215 494 23 66, certo? O telefone do seu escritório na ABCD Seguros, é o 215 745 22 30 e o seu telemóvel é o 999 266 25 66. Correcto?

Cliente (surpreendido e agastado): Oiça lá, como é que uma empresa de pizzas conseguiu todas essas informações?

Telefonista: Todos os estabelecimentos públicos estão ligados em rede ao Grande Sistema Central.

Cliente (distraído): Ah, sim, é verdade, li qualquer coisa acerca disso, mas passou-me… Bem, quero encomendar duas pizzas: uma Quatro Queijos e outra Calabresa...

Telefonista (autoritária): Desculpe, mas talvez não seja boa ideia.

Cliente: Essa agora! Não é boa ideia porquê?

Telefonista (persuasiva): Porque vejo na sua ficha médica que o senhor sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alto. Além disso, o seu seguro de vida proíbe categoricamente escolhas perigosas para a saúde.

Cliente: Olhe que tem razão! O que é que sugere?

Telefonista: Por que é que não experimenta a nossa Pizza Superlight, com tofu e rabanetes? O senhor vai adorar!

Cliente (irónico): Como é que sabe que vou adorar?

Telefonista: O senhor consultou a página “Receitas Gulosas com Soja” da Biblioteca Municipal, no dia 15 de Janeiro, às 14:27 e permaneceu ligado à rede durante 39 minutos. Daí a minha sugestão...

Cliente: Ok, está bem! Mande-me então duas pizzas tamanho familiar!

Telefonista: É a escolha certa para o senhor, a sua esposa e os vossos quatro filhos, pode ter a certeza.

– Cliente: Quanto é?

– Telefonista: São 49,99.

– Cliente (obsequioso): Quer o número do meu Cartão de Crédito?

– Telefonista (comprometida): Lamento, mas o senhor vai ter que pagar em dinheiro. O limite do seu Cartão de Crédito foi ultrapassado.

– Cliente: Tudo bem. Posso ir ao Multibanco levantar dinheiro antes que chegue a pizza.

– Telefonista: Duvido que consiga. A sua conta de depósito à ordem está com o saldo negativo.

– Cliente (afrontado): Olhe, meta-se na sua vida! Mande-me as pizzas que eu arranjo o dinheiro. Quando é que entregam?

– Telefonista (encabulada): Estamos um pouco atrasados. Serão entregues dentro de 45 minutos. Se estiver com muita pressa pode vir buscá-las, se bem que transportar duas pizzas na moto, não é lá muito aconselhável. Além de ser perigoso.

– Cliente: Mas que história é essa? Como é que sabe que eu vou de moto?

– Telefonista: Peço desculpa, mas estou a ver no monitor que não pagou as últimas prestações do carro e por isso foi penhorado. Mas a sua moto está paga e deduzo que esteja a usá-la nas deslocações.

– Cliente: F*** !

– Telefonista: Por favor, não seja mal-educado. Não se esqueça de que já foi condenado em Julho de 2006 por ofensas em público a um Agente da Autoridade.

– Cliente: (Silêncio).

– Telefonista: Mais alguma coisa?

– Cliente: Não. É só isso. Ah, espere. Não se esqueça dos 2 litros de Coca-Cola que constam na promoção.

– Telefonista: O regulamento da nossa promoção, conforme citado no artigo 095423/12, proíbe a venda de bebidas com açúcar a pessoas diabéticas.

– Cliente (exasperado): Aaahhh ! ! ! Vou atirar-me da janela abaixo ! ! !

– Telefonista (desdenhosa): Não faça isso, porque só ia torcer um pé, pois que mora num rés-do-chão!

     O restante correio era o habitual: uma chusma de anedotas requentadas, uns quantos ficheiros com numerosas fotografias disto e daquilo, de desenhos feitos com frutos no prato a paisagens retocadas no photo-shop, alguns livros de direito, de ficção e de culinária recém-publicados pirateados em PDF, comentários anónimos sobre os abusos e os serventuários do poder e recortes da imprensa sobre as últimas proezas dos donos da gente.

     Malgrado a sua decisão de manter e salvaguardar o retiro higiénico, o eremita episódico não resistiu a dar uma olhadela aos estragos registados no tecido social durante a sua ausência, constatando então que as mais originais façanhas candidatas ao podium que tinham ocorrido em tão curto período eram as seguintes:

 segundo o próprio relatório que o governo apresentou à Troika, as dívidas fiscais paradas nos tribunais somavam 7,2 mil milhões, tendo crescido 1,6 mil milhões relativamente ao saldo do ano anterior (2013);

um cidadão com uma grave infecção hospitalar foi recusado por quatro hospitais entre Leiria e Lisboa, por não disporem de uma cama vaga de cuidados intensivos, acabando por falecer:

uma auditoria do Tribunal de Contas a 19 dos 17 contratos de concessão das águas a entidades privadas chumbou uma grande parte dessas famosas PPP por serem são perfeitos «pactos leoninos», permitindo lucros da ordem dos 15,5% quando são recomendadas taxas entre 8 e 10%;

foi detectada mais uma rede de burlas ao sector da saúde de muitos milhões, acrescentando-se que, só nos últimos dois anos, a lesão dessa natureza excede os 200 milhões;

uma sondagem concluiu que 80% da população considera que o país está «muito mal» e «pior» que antes da tão acarinhada salvação pela Troika;

um sindicato dos professores vai fazer uma queixa ao Ministério Público porque, enquanto os docentes e os estabelecimentos públicos são esvaziados de funções e se encaminham oficialmente as turmas para os colégios privados subvencionados pelo Estado, estes, alguns deles, vão açambarcando outras valências, algumas das quais duvidosas, porque chegam até a entrar pelo ramo da hotelaria!

     Como qualquer outro pobretanas, o que mais impressionou o acérrimo defensor de velhos presos por apanharem lenha nas margens da ribeira e os perigosos condutores de veículos sem roda sobressalente estacionados na via pública foram as notícias que metiam balúrdios que ele nem em imaginação conseguia ver a altura da carrada de euros e, assim, contagiado com o feitiço do dinheiro, apostou consigo mesmo que, para satisfazer a nova exigência da Troika de mais um corte de 2,9 mil milhões, o governo não irá cobrar os impostos parados em tribunal, nem muito menos empenhar-se em que, anualmente, caduquem ou prescrevam outros da ordem dos mil milhões, nem combater a corrupção/economia paralela (a que já chamam eufemísticamente economia informal!) que nos lesa nuns 15 mil milhões de impostos não cobrados, ou em desmantelar as inúmeras máfias que assaltam descaradamente o erário público, com contratos formais ou com receitas falsificadas, e, ao invés

vai meter outra vez a mão nos bolsos de quem trabalha, inventando mais sobretaxas e reduzindo a protecção social.

     Como essas desconfianças eram na verdade convicções solidamente implantadas no modus vivendi em que todos vinham soçobrando e a sociedade civil perecendo, o causídico começou a sentir-se retalhado pelas arestas do caminho traiçoeiro em que se embrenhara o seu pensamento e, não querendo ficar exangue, porque a tese em que estava enfronhado lhe exigia sangue, suor e lágrimas, fechou o programa do correio electrónico e reabriu o processador de texto.

     No concílio do Olimpo, porém, havia sido decido outra coisa e, na tarde do último dia da clausura voluntária, o doutor del Prado foi tirado de seus cuidados por um telefonema ainda mais preocupante do seu detestado colega doutor Ramiro Fateixa, ainda para mais com a inquietante particularidade de marcar o encontro à porta do centro comercial vizinho da Inês, o que era bastante anómalo e completamente ao arrepio do secretismo quase paranóico em que ele envolvera o encontro anterior em público, o que, razoavelmente, fazia desconfiar de uma marosca qualquer para benefício de quem quer que fosse, menos do requisitado visitante, mas, embora receasse ser ultrapassado pela direita, acabou por anuir e comparecer à míngua de qualquer escapatória atendível.

     — Como está, ilustre colega? Muito obrigado pela prodigalidade de que não sou merecedor e mil perdões pelo meu convite abusivo, mas tenho estado muito ocupado e temo não poder ausentar-me para muito longe porque aguardo um contacto importante. Por favor, releve-me a impertinência que, se me incomoda a mim, muito mais gravosa será para si.

      Se havia homem predestinado a não frustrar expectativas era o advogado da Inês: sempre untuoso, pernóstico, enfático, de sorriso delambido, gestos amaneirados, olhos húmidos suplicantes, toda uma compostura a tresandar a manha, frivolidade interesseira, gravidade insidiosa, a qual provocava no seu desditoso parceiro uma aversão orgânica que tinha muita dificuldade em abafar; esforçando-se ainda mais no abafamento do insistente capricho da imaginação em o presentear com a imagem inversa do personagem, quando estivesse enfurecido com uma desfeita grave e o olhar fulgisse como o gume de punhais, o rosto de tez macerada se transfigurasse numa máscara tétrica de fera encurralada, rugindo ordens achincalhantes e vociferando ameaças cruéis, as narinas anódinas se dilatassem, vibrantes e frementes, exalando fumarolas pestilentas como um dragão infernal, e as mãos suaves, tímidas, escorregadias, cinzeladoras de gestos dúbios, pálidos, andróginos, se metamorfoseassem num cacho cactecáceo, eriçado de puas aguçadas e os dedos lânguidos ganhassem elasticidade sólida e garras implacáveis que dilaceravam profundamente, ou se enroscavam em laços que asfixiavam em dolorosa agonia, num exercício de crescente êxtase homicida – a imagem era poderosa e sedutora, mas ele empenhava-se em escorraçá-la com firmeza, porque só a evocação pálida e inconsistente lhe causava arrepios e lhe deixava a boca encortiçada, e por isso se obstinava em ceder à tentação, não querendo construir mentalmente a imagem de um doutor Fateixa encolerizado que seria quase tão pavorosa e destrutiva como o cenário dantesco da sua actuação vingativa.

     — Oh, não se preocupe com isso – replicou o doutor del Prado, fazendo um gesto de enfadado, depois de lhe largar a mão mole –, também tinha uma coisa a tratar aqui perto, portanto, juntou-se o útil ao agradável.

     O doutor Fateixa sorriu, encantado, porque presumiu que, se o útil era os afazeres do visitante, o que lhe agradava era o encontro.

     — Precisamos de burilar umas pequenas arestas.

     — Pois. Já tinha sugerido isso.

     — No interesse de ambos. Mas com maior vantagem para si.

     — Espero bem que sim, porque não jogo para perder. E, aliás, não seria nada delicado, nem próprio da sua imagem, fazer-me novas propostas mais desfavoráveis.

     — Tem toda a razão. Aliás como sempre. Mas… vamos entrando, por obséquio – rematou o doutor Fateixa, fazendo um gesto convidativo, solene e cavalheiresco.

     Caminhando um pouco à frente, com o sobretudo a avoejar, como um corvo apressado e desajeitado, o doutor Ramiro Fateixa conduziu o visitante para um restaurante luxuoso que era uma espécie de ex libris do centro comercial da terrinha, onde, ao que constava nas rubricas de mexericos das revistas dos famosos, se faziam conspirações políticas, mixórdias dos graúdos do desporto, trapaças de rivais dos obscuros meandros empresariais – na altura todos ausentes e empenhados nas suas tramóias obsessivas, porque se assim não fosse o intragável Doutor Espanta-Sustos nem teria passado do vestíbulo, enquanto agora era apresentado aos funcionários e a algumas outras pessoas em que tropeçaram pelo caminho com florido gáudio e solene orgulho pelo seu anfitrião.

     Também estava florida a mesa onde se sentaram, marcada com os nomes dos dois, em placas de dimensões excessivas e letras pretas, redondas e agressivas, provavelmente a condizer com aquele mundo onde a visibilidade destronava o currículo, a ostentação era a seiva do triunfo e o êxito era proporcional às lantejoulas ostentatórias.

     — O que deseja? Tem apetite?

     — A esta hora? Nunca lanchei – esclareceu o doutor del Prado. – Aliás, almocei divinamente. Hoje cozinhei eu.

     — É um homem de múltiplos talentos – lisonjeou-o o doutor Fateixa, com um sorrisinho derretido.

     — Sem favor!

     — Pode-se saber o que confeccionou, sem indiscrição.

     — Com certeza. Numa primeira fase, dir-se-ia que estava a fazer uma omeleta de frango, de sobras de frango na brasa, mas, numa fase intermédia, já se diria que iam sair ovos mexidos, porém, na fase final, à imagem e semelhança dos truques dos mágicos que deixam a plateia estarrecida, destapa-se o prato e somos surpreendidos com um penetrante e irresistível aroma a pataniscas de bacalhau!

     — Deixa-me atónito.

     — Eu fico sempre! Mas, a propósito de bacalhau, oiça esta que me contaram há pouco. Dois adolescentes estão na marmelada na sala, um casalinho, convirá esclarecer, ou antes, esclarecendo efectivamente, um rapaz e uma rapariga, e às tantas a mãe dela grita da cozinha: meninos, lanche! Os jovens lá se compõem à pressa e acorrem ao chamamento. Começando a comer, o rapaz julga conveniente louvar os dotes da futura sogra, pelo que exclama, deliciado: ui, uma maravilha, estes pastéis de bacalhau! Sem se dar por achada, a velha observa-lhe maternalmente: rapaz, vai lavar as mãos, porque os pastéis são de coco! Ah ah ah!

     Verdadeiramente divertido, o doutor del Prado piscou o olho ao seu anfitrião e pregou-lhe uma palmada no braço pousado em cima da mesa, provocando-lhe um sobressalto e um esforçado sorriso amarelo de pretensa cumplicidade.

     — Mas então o que toma? – apressou-se a repetir o doutor Fateixa, para travar as efusões escandalosas do seu conviva.

     — Hum… não sei. Suponho que, nestes paraísos chiques, uma mini não será um pedido lá muito católico.

     — Ser-lhe-á servido tudo o que pedir e com toda a naturalidade.

     — Tudo? Hum… Talvez me apeteça uma virgem sacrificial. Será que se arranja?

     — E por que não? – replicou o doutor Fateixa, olhando-o fixamente e num tom dúbio.

     — Não me provoque os instintos recalcados porque… pode-me apetecer a cabeça de um sindicalista, numa bandeja.

     — O pedido é demasiado vago para poder ser satisfeito, porque só bandeja é apenas um conceito abstracto – repreendeu-o o advogado da IN-EX, com expressão impenetrável e numa toada depreciativa. – Agora por metáforas… tenho uma surpresa para si.

     — Assim são duas.

     — Mas, sem mais rodeios, o que toma? – inquiriu objectivamente, exigindo uma resposta, enquanto colocava no colo a malinha que depositara em cima da cadeira à sua direita.

     O convidado optou finalmente por um martini duplo, com muito gelo, e o seu anfitrião pediu um chá e uns bolos que, pelo nome, o doutor del Prado não fazia ideia sobre o seu formato, ingredientes e sabor.

     — Não encontrei os seus livros à venda…

     — Teve sorte, assim não desperdiçou dinheiro. Mas, deixe lá, reuni há tempos uma mancheia de poemas e enviei o volume a uma editora, estando a aguardar o respectivo veredicto.

     — Ah, mas que novidade, muitos parabéns!

     — Obrigado, mas deixe-me fazer figas, porque o livro está lá há bem uns quatro meses e a carta nunca mais chega a Garcia.

     — Seja tolerante, porque é um investimento avultado e os tempos não estão para poesias.

     — É um facto! Nunca estiveram e, agora, ainda muito menos.

     — Um dia destes, quando menos esperar, tem uma surpresa agradável. A propósito, qual é a editora?

     O descoroçoado poeta declinou o nome da casa e, porque o assunto lhe era um pouco penoso, insistiu em conhecer a surpresa que lhe fora prometida, a qual foi prontamente satisfeita, sendo-lhe colocado em frente a fotocópia de um poema incluído num livro que o doutor Fateixa havia desenterrado na Biblioteca Nacional de Lisboa.

 

ELEGIA À MOTO

 

Prenhe de aromas exóticos e impregnado de uma difusa

E obsidiante ânsia pungente, o celebrado crepúsculo

Desce lentamente e derrama-se na superfície estática

E fantasmal da paisagem monótona vestida de silêncio,

Uma leve aragem insinuante e cálida como os corpos

No prelúdio do sinuoso tiro sensual beija ternamente

Os arbustos excitados por um frémito voluptuoso

E extrai delicadamente do rosto macerado do mar calmo

As últimas lantejoulas flamejantes para homenagear

Os gloriosos e lapidados apóstolos da alegria interdita,

 

E, bruscamente, como uma trombeta da redenção universal

Lançando um apelo estrídulo à multidão de resignados

Ao fascínio da sina fácil, uma rutilante e garbosa moto

Troa os ares com indetível e sublimado orgulho regenerador.

 

Trémula e ofegante, coroada de radiosa e virgem rebeldia,

A deslumbrante máquina onírica aproxima-se e detém-se

Em primeiro plano, silenciosa e brejeiramente inclinada

Num desafio irreverente às rastejantes sombras rumorosas.

 

Ao fundo, silhuetas nebulosas de monstros agonizantes

E línguas de fogo e sangue fixadas como um estigma fatal

De esperançosa insubmissão geral nas volutas amarelas

Da desolação sideral em inexorável e surdo desmoronamento.

E, em contraluz, dois jovens erectos e ternos fitam-se

Com angustioso enlevo e tumultuosa exaltação reprimida,

Enquanto as suas mãos febris reclamam o corpo desejado,

As cabeças ébrias se aproximam com equívoca lentidão

E os seus lábios se fundem e confundem num torvelinho

De violenta e insaciável comunhão de quimeras tangíveis.

 

O beijo é perfeito, o cenário excitante, a miragem sedutora.

A moto destaca-se aliciantemente. Corta! Corta! Parabéns!

 

     O doutor del Prado leu o poema com um ar ausente e depois remeteu-se ao silêncio durante bastante tempo, nitidamente alheado do ambiente que o cercava, decerto emocionado e nostálgico.

     — Desculpe se lhe causei, com a melhor das intenções, um qualquer embaraço – disse o doutor Fateixa, timidamente, quase comungando do devaneio místico do poeta inacessível.

     — Sabe, não costumo reler o que publico, pela mesma razão porque não posso reviver o dia de ontem, e agora, de repente, inadvertidamente, caí desamparado num poço que, por alto, terá uns vinte anos, logo, as paredes estão muito esboroadas e a escalada é difícil, porque, como já disse, a mim mesmo, noutro poema, não se pode voltar a casa.

     Depois de mergulharem ambos num pequeno silêncio nostálgico, o doutor Fateixa observou num tom brando:

     — E será que se quer?

     — O quê?

     — Voltar a casa.

     — Boa pergunta, mas não lhe sei responder. No fim, só queremos o que não temos. O que almejamos ou o que perdemos. Daí a angústia…

     — Talvez a resposta esteja no poema — sugeriu o doutor Fateixa, insinuativo. – Podia fazer o favor de o recitar?

     Aqui?!

     — E por que não? – disse de pronto o assessor da Inês, com um sorriso beatificamente desafiador.

     — Hum… Tem razão. É o palco ideal para revolver escombros. É mesmo. Aí vai:

 

NÃO SE PODE VOLTAR A CASA

 

Sinuosas são as veredas

De um sorriso esvoaçante

Sobre os sulcos do pretérito

Desfolhado

Que espreita no rumor

Das palavras apetecidas

Na redoma que entontece.

 

Não se pode voltar a casa.

 

Álgidas são as brisas

Que despertam ecos pungentes

De sagas e delírios

Fenecidos

Entre as pétalas dispersas

De uma rosa estiolada

No dédalo da nostalgia.

 

Não se pode voltar a casa.

 

Vertiginosas são as noites

Que se debruçam nos abismos

Das pontes arrastadas pelo rio

 

                 alucinado

 

Não se pode voltar a casa.

 

     — Estou impressionado – confessou o doutor Fateixa, com semblante que o não desmentia. – O ilustre colega é um grande poeta. Temos de dar à estampa o ditoso livro acaçapado. Perdoe-me a ousadia e qualquer embaraço…

     — Não, esteja à vontade, o que dói e não se sente, são apenas coisas minhas e que eu próprio não distingo, por isso, passemos adiante e esclareça-me porque elegeu aquele poema entre tantos, o que me surpreende.

     — Também sou um apaixonado por motos.

     — A sério? Estava longe de imaginar…

     — Porquê? – perguntou o doutor Fateixa, quase melindrado.

     — Bem, não tem tipo de motard!

     — Bom, lá isso… Mas as motos fascinam-me, desde rapazinho.

     Embora ainda navegasse num revolto mar obscuro que o atraía com um magnetismo tenebroso, o doutor del Prado deitou uma rápida mirada ao seu anfitrião e, fugazmente, calculou o motivo do deslumbramento de quem vivia aprisionado numa teia onde, ao menor descuido, seria a presa há muito cobiçada e respondeu num tom que, pela primeira vez, era quase genuinamente amistoso:

     — Não se estava à espera, mas temos essa afinidade.

     — As pessoas são um mistério. Aprofundando, talvez descobríssemos outras.

     — Sim? Por exemplo…

     — … nascemos ambos desvalidos e subimos na escada social rasgando o peito e com as mãos em carne viva.

     O doutor del Prado voltou a olhar demoradamente o seu anfitrião e, por momento, tributou-lhe uma vaga admiração, porque ele, tal como o cabo de esquadra, também havia feito o seu trabalho de casa e isso era um mérito que seria sempre de enaltecer, mormente numa época que dava a primazia e os louros aos arrebatamentos superficiais de prazeres imediatos e primários.

     — Como acabou de dizer, as pessoas são surpreendentes e, se não mudarmos depressa de rumo, ainda acabamos ambos a fazer poemas dilacerantes à maneira dos clássicos românticos, o que seria ridiculamente deslocado, por isso, passemos à matéria de facto e confronte-me, se faz favor, com a proposta que referiu – observou o poeta estonteado, mas com esforçada e apropriada frivolidade.

     Foi então a vez de o doutor Ramiro Fateixa deitar uma olhadela rápida e penetrante ao seu convidado, para, de seguida, se entreter, demorada e deleitosamente, a limpar os lábios regalados com o aromático chá e os deliciosos bolos que eram já uma saudosa memória.

     — A proposta que consideramos mais vantajosa para ambas as partes é a seguinte: pagamos 150.000 em dinheiro e juntamos a vivenda Família Patrício, reconstruída a nossas expensas.

     — Oh doutor, o que é lá isso?! – guinchou o doutor del Prado, nos píncaros da incredulidade. – Agora querem pagar uma indemnização de invalidez permanente em géneros? Mas que brincadeira é esta, hã?!

     — É uma proposta vantajosa para a contraparte! – replicou de pronto o doutor Fateixa no seu tom mais mavioso. – Repare, o seu cliente não tem eira nem beira, quando tiver alta, para onde vai, sem conseguir governar-se sozinho? Compra um apartamento? Custa-lhe mais de cem mil e vive numa colmeia. É o melhor conselho que o caro colega tem a dar-lhe? Repare também que a vivenda, devidamente reconstruída, vale mais de trezentos mil. Isto sem contar que, no futuro, ele precisa de uma casa em condições.

     — Que coisas mais estranhas diz hoje… Por que afirma tal?

     — Ele é muito novo e a vida é longa, quem sabe o que nos reserva o futuro…

     O doutor del Prado pressentiu que havia qualquer coisa atrás dos surpreendentes prognósticos do seu anfitrião, mas achou que não era a altura propícia para procurar tirar nabos da púcara e encetou uma fuga em frente:

     — Pessoalmente, a proposta não me agrada, mas, como não sou eu que decido, se já acabou de lanchar, vamos os dois apresentá-la ao interessado.

     — Esperava que o meu distinto colega falasse com o seu cliente…

     — Quem, eu?! Nem pensar! Ele ainda ia julgar que eu estou feito com vocês e ganho dos dois lados. Se quer avançar com essa proposta, vamos os dois falar com ele. E… é agora ou nunca. Porque o negócio não me cheira e quero o nariz desentupido quando as flores começarem a desabrochar, muito em breve.

     — Se é a sua posição final…

     Foram encontrar o doente Jaime Chaves a ver televisão, sentado numa cadeira de rodas, que se mostrou surpreendido por ver chegar o seu advogado acompanhado do defensor da Inês, cuja mímica o doutor del Prado captou e registou, congratulando-se com a decisão praticamente instintiva que havia tomado.

     — O senhor doutor Ramiro Fateixa tem uma segunda proposta a fazer-te, em nome da IN-EX, que não colhe propriamente o meu aplauso, mas dos teus interesses sabes tu.

     O doente ouviu atentamente a demorada arenga do proponente, que girou mais à volta dos benefícios de uma casa com classe e bons cómodos no futuro que lhe estaria reservado, insistindo nas múltiplas vantagens da habitação pronta a recebê-lo quando tivesse alta e no apoio, novamente reiterado, da empresa na sua reinserção social, chegando mesmo a observar-lhe que não se assustasse com a manutenção da casa, porque eles arranjariam alguém que, pelo menos nos primeiros meses, se encarregaria disso – e do mais que fosse preciso –, e este argumento esbateu-lhe muitas reticências, porque começava enfim a interiorizar que passaria o resto da vida amarrado à cadeira e assustava-o pensar que ginástica teria de fazer para se sentar na sanita, por exemplo, uma coisa tão simples, quanto mais o governo da casa, mas, ao mesmo tempo, via voar cem mil e isso também o preocupava, porque não sabia como ganhar a vida reformando-se dos assaltos.

     — O doutor o que acha? – perguntou Jaime Chaves, pousando os olhos angustiados no seu advogado.

     — Por mim, acho que a proposta anterior é mais vantajosa e é para ir avante.

     — A proposta anterior é para ir avante – disparou Jaime Chaves.

     — Oh, doutor, por favor, não se precipite – pediu o doutor Fateixa, mostrando finalmente que também era capaz de ter emoções. – Por favor, não esqueça que já tínhamos um acordo…

     — Tínhamos e temos, por isso dizemos que está de pé e vai em frente. Agora vem com uma segunda proposta que, sendo substancialmente diferente da primeira, não pode substituir aquela, pelo que, a ser aceite, teríamos de fazer um segundo acordo. Certo?

     — Bem, sim, em certa medida…

     — Pois bem, talvez possamos chegar a um novo acordo, negociando as condições novas…

     — Mas, economicamente, os contratos são equivalentes.

     — Bem, sim, em certa medida – concordou o doutor del Prado, plagiando-o ostensivamente. – Acontece porém que, se o meu cliente quiser comprar cem mil euros de acções em bolsa, não pode pagá-las cedendo uma fracção da casa. De acordo?

     — Continue, se faz favor.

     — Então, negociando as condições do novo acordo proposto, temos que… aceitamos a casa, reconstruída sob a minha própria supervisão, e… 200.000 mil em dinheiro.

     — Assim ficamos a perder cinquenta mil – lamuriou o doutor Fateixa, desolado, parecendo que o dinheiro saía do seu próprio bolso.

     — Isso depende da ordem dos factores. Talvez fiquem a ganhar cinquenta mil que não desembolsam… Fora o resto, que não me interessa.

     — O colega é um homem terrível!

     — Sim, dizem isso. E outras coisas piores. Sou mesmo um homem sem sorte nenhuma, já viu?!

     — O pior é que também tem o proveito – acrescentou o doutor Fateixa, abrindo os braços em sinal de rendição. – Importa-se que passemos o acordo a escrito?

     — De maneira nenhuma. É até uma condição vantajosa para nós, antes que venham com uma terceira proposta, a oferecer uma barraca de praia ou um carro.

     — Mas olhe que, quanto ao carro, ele precisa de um, um carro fiável, com classe e adaptado…

     — Ando com zumbidos nos ouvidos e não percebi bem o que acabou de dizer, mas também não importa, deixe lá ver uma fohinha A4 que eu já redijo o segundo e último acordo.

     Como a parte introdutória relativa à identificação dos intervenientes era mais extensa que o articulado, que aliás era singular, o doutor del Prado despachou a tarefa em escassos minutos, mas, curiosamente, foi aquela parte introdutória que suscitou uma tímida objecção ao patrono da empresa.

     — A minha identificação não está lá muito correcta, mas enfim… É que, formalmente, já não sou advogado da empresa, porque fui recentemente coaptado para vogal do conselho de administração.

     — Mas que novidade, homem! Muitos parabéns! Se fosse dos meus, era uma excelente ocasião para nos embebedarmos!

     — Lamento, sou abstémio.

     — Ah, afinal também tem defeitos e malformações…. Mas, deixe lá, pode ser que ainda inventem uma cura para isso.

     — Então o meu ilustre colega às vezes embebeda-se?

     — Nunca! Só de o pensar ele fica envergonhado. Mas, sabe, o poeta tem ascendência índia e esse às vezes faz as suas danças guerreiras – esclareceu o doutor del Prado, com modos conspirativos.

     — Mas que surpresa, a ascendência índia…

     — Bem, digamos que é uma ascendência em linha colateral, na medida em que, em circunstâncias excepcionais, os índios costumam dizer que «hoje está um bom dia para morrer» e o tal poeta, perante as mesmas circunstâncias, e depois de estacionar a moto, traduz esse sentimento para português clássico dizendo que «hoje está um bom dia para beber». Ah ah ah!

     Quando o doutor Fateixa voltou costas, com uma mão afundada no bolso do sobretudo, segurando firmemente o papel do acordo que iria puxar mais lustro à sua condecoração, o doente Jaime Chaves revelou as suas súbitas reticências ao seu sorridente advogado:

     — Lembrei-me agora de uma coisa… esquisita. Há tempos, eu e o JC Santinho já vendemos aquela casa a uns lorpas! Não quererão fazer-nos o mesmo?

     — Não, não, está descansado. Eles não dão golpes desses.

     — Dão piores.

     — Pois dão. Pelos vistos a casa é da empresa, ou de algum dos seus clientes, e pretenderão passá-la a notas para pôr outras a circular. Este acordo é muito melhor que o anterior, aliás, foi sempre, desde a primeira hora, só disse o contrário para sacar mais algum. Um dia, quando a casa estiver em perfeita condições, vale uma fortuna e tu, se tiveres necessidade, desfazes-te dela e arranjas uma mais pequena e bem mais barata. Em resumo, ficámos a ganhar, saímos por cima.

     — Ou seja, ficaram debaixo e fodêmo-los.

     — Até ao osso!

     — «Hoje está um bom dia para morrer!» – concluiu o doente, rindo com gosto.

     — No dia que saíres daqui ainda estará melhor – corrigiu-o o doutor del Prado, com uma piscadela de olho cúmplice. – Olha, vem aí o teu jantar. Vou-me embora, porque me faz lembrar a minha comida.

     — Lá fora, tem má fama, mas eu acho-a muito boa – confessou o doente, surpreendido.

     — Também eu, por isso mesmo fico deprimido.

(FIM DO CAPÍTULO 9)

 

 

 

 

 

Caixa de texto:  OBS. – Sobre a obra anterior (VOL  I)

«Um Ano em Cheio - 365 contos digitais»

Vd. página Novidades deste sítio onde se encontram textos introdutórios

e se reproduzem alguns contos

Ainda acerca da apresentação dessa obra Reproduz-se a seguir a

 

 

 

 

Entrevista ao DIÁRIO DO ALENTEJO de 2014-Fev-21

(pág. 32, última)

Conduzida pela jornalista Nélia Pedrosa

 

(Nota: o texto apresenta-se na versão do Acordo Ortográfico 90 por razões técnicas do jornal)

 

 

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Parte II desta Página

 

 

 

 

 

selecção de textos

(entre centenas dispersos por mais de 20 publicações)

publicados na imprensa

desde 1972

 

 

 

Este artigo de 1972-03-15

- tinha o autor 17 anos -

foi o primeiro trabalho publicado

e o primeiro que o autor escreveu

para publicação no diário ÉPOCA

(do qual foi repórter desportivo 8 meses depois,

bem como do diário JORNAL DO COMÉRCIO)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O autor é o 2º a contar da direita.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esta rubrica prolongou-se durante largo tempo, tendo sido publicadas dezenas de notícias de Trolaró-dos-Cepos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os poemas que seguem foram retirados

da ordem cronológica por razões óbvias.

 

 

 

                          «A Forja», 12-06-1979

 

 

 

 

 

FIM DA PÁGINA

 

 

 



[1] Embora com uma linha de fronteira (imaginária) ao meio, Mariana era natural da mesma região geográfica do poeta António Machado, autor dos versos «Caminante, no hay camino / Se hace camino al andar / Al andar se hace camino / Y al volver la vista atrás / Se ve la  senda que nunca /  Se ha de volver a pisar», o que ela tomava por adágio.